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"Até ao poder, André Ventura muda o que for preciso. O que quer é eleger"

O jornalista de investigação Alexandre R. Malhado é o convidado desta sexta-feira do Vozes ao Minuto.

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© Alexandre Azevedo

Daniela Filipe
29/11/2024 08:23 ‧ há 2 semanas por Daniela Filipe

Política

Alexandre R. Malhado

"Votou em José Sócrates", criticava a retórica populista do presidente eleito Donald Trump e censurava a estigmatização de comunidades. Entretanto, e que nem um camaleão, adaptou-se às bandeiras comumente associadas à extrema-direita, somente com um alvo em vista: ter "poder". Referimo-nos nada mais, nada menos, do que ao líder do partido populista de direita racial Chega, André Ventura, cujo percurso foi acompanhado de perto por Alexandre R. Malhado.

 

Em 'Dias de Raiva', o jornalista de investigação concedeu um vislumbre à psique do antigo vereador social-democrata que foi, sem qualquer relevância no panorama nacional, catapultado para as manchetes dos meios de comunicação social ao longo de várias semanas, graças aos 'soundbites' polémicos – e enganadores – sobre a comunidade cigana. Mas, afinal, como é que o "projeto unipessoal" de André Ventura, que nasceu 'à boleia' do sistema que tanto ambiciona derrubar, passou de eleger um deputado único, em 2019, para 50, no sufrágio deste ano? Qual é o segredo do sucesso?

Na verdade, a fórmula é bastante simples. Segundo contou Alexandre R. Malhado ao Notícias ao Minuto, o Chega não só ganhou terreno devido à erosão dos partidos tradicionais, nomeadamente do Partido Socialista (PS) e do Partido Social Democrata (PSD), como encontrou uma 'mina de ouro' no vazio político da extrema-direita em Portugal que, graças à "espinha dorsal maleável" de André Ventura, conseguiu preencher.

Além disso, as contradições constantes são facilmente ultrapassáveis, uma vez que "as pessoas ouvem aquilo que querem ouvir". Por isso, e de acordo com o jornalista de investigação, "se os partidos não acordarem [...], o Chega vai continuar a crescer".

Os partidos de extrema-direita querem, à partida, alterar o regime com métodos subversivos, e os partidos de direita radical querem alterar o regime através da regras do jogo. Portanto, a partir das eleições livres, das regras democráticas, pretendem infiltrar-se e alterar a Constituição, por exemplo. É uma diferença sublime, mas que continua a manter a gravidade antidemocrática deste tipo de partidos

Algo que me saltou à vista foi o facto de salientar que o Chega é um partido "não de extrema-direita, mas sim de direita radical". É, assim, incorreto considerarmos que o Chega faz parte da extrema-direita?

É uma excelente questão que tanto eu, como outros jornalistas que têm acompanhado o Chega tiveram ao longo dos anos. É muito importante sabermos como classificar o Chega. Em primeiro lugar, devemos saber que isto é tudo muito instável. Nestes partidos de direita radical com carácter populista, o que é num dia uma coisa pode ser diferente noutro. Aquilo a que me cingi foi olhar para o que a ciência política diz. Há uma diferença entre estes partidos, que são um fenómeno relativamente novo, para os partidos de extrema-direita, que são um fenómeno que já ultrapassa algumas décadas.

O comum é que querem subverter o sistema, alterar o regime; a diferença é a forma. Os partidos de extrema-direita querem, à partida, alterar o regime com métodos subversivos, e os partidos de direita radical querem alterar o regime através das regras do jogo. Portanto, a partir das eleições livres, das regras democráticas, pretendem infiltrar-se e alterar a Constituição, por exemplo. É uma diferença sublime, mas que continua a manter a gravidade antidemocrática deste tipo de partidos.

Abertamente, o Chega admira democracias iliberais, como a Hungria de Viktor Orbán [primeiro-ministro], e tem um carácter abertamente populista, ou seja, mostra alguns laivos de autocracia. Devemos estar preocupados com isso, naturalmente

Tendo em conta que o Chega se trata de um projeto unipessoal que partiu de uma "fome sem fim de reconhecimento" por parte de André Ventura, que se sobrepôs às normas democráticas no seu seio; que se coloca ao lado do Vox, partido populista de extrema-direita espanhol; que se identifica, por exemplo, com o vice-primeiro-ministro de Itália, Matteo Salvini, secretário-geral do partido de extrema-direita Liga Norte; que pretende implementar a chamada IV República; que faz referências a Benito Mussolini, a Adolf Hitler, a António de Oliveira Salazar (Deus, Pátria e Família [com adição de Trabalho]); que replica gestos idênticos à saudação romana; que assume que os jornalistas "são os inimigos do povo"; que diz que será presidente "dos portugueses de bem" e que se está "nas tintas para a Constituição", não é legítimo considerarmos que o Chega é uma ameaça à democracia e, consequentemente, de extrema-direita?

Acho que é discutível. Por um lado, a verdade é que o Chega conseguiu angariar muita gente que não votava e que passou a votar. Digo o Chega, mas é o caso de outros partidos deste género. Há um carácter eleitoral interessante na aparição deste tipo de partidos: durante muitos anos, a abstenção estava a subir e, agora, está a descer.

A verdade é que há uma erosão dos partidos tradicionais, nomeadamente do PS e do PSD, cujos votos têm ido para partidos populistas; num primeiro momento [foram] para o Bloco de Esquerda, que teve um período em que tinha uma grande popularidade, e agora para partidos que podemos discutir que têm carácter antidemocrático, como é o caso do Chega, que está a ganhar com a erosão dos partidos do sistema.

Abertamente, o Chega admira democracias iliberais, como a Hungria de Viktor Orbán [primeiro-ministro], e tem um carácter abertamente populista, ou seja, mostra alguns laivos de autocracia. Devemos estar preocupados com isso, naturalmente. Tudo isto para dizer que, por um lado, sim, é importante saber que a aparição do Chega trouxe pessoas para as urnas mas, por outro, [o partido] apresenta medidas e inspirações antidemocráticas que podem, efetivamente, subverter a nossa Constituição, quanto mais não seja pelo facto de quererem a IV República.

A espinha dorsal dele é muito maleável, sim, mas é natural dele; o contraditório convive dentro dele há muitos, muitos anos

Nas eleições legislativas de 2022, André Ventura assumiu-se como candidato "do povo", contra as "elites". Aliás, o Chega diz ser antissistema mas, na verdade, podemos argumentar que faz totalmente parte do sistema, tendo em conta a forma como atua e como é financiado?

Sim, sem dúvida. Um dos principais argumentos deste livro, além de o Chega ser um projeto unipessoal de André Ventura, é precisamente que André Ventura nasceu do sistema. Votou em José Sócrates, fazia parte do PSD, cresceu como um cacique do PSD e saiu do PSD pura e simplesmente porque ninguém lhe deu atenção dentro do partido. Portanto, saiu e formou o seu próprio partido porque quer poder, porque quer atenção.

Mais do que Direta ou Esquerda, o que une ideologicamente é o populismo, é aparecer nas capas de jornais, marcar a agenda. O populismo é uma ideologia espessa, ou seja, tanto dá para se agarrar a medidas de Direita, como a medidas de Esquerda, que é o que André Ventura faz. Tentou sair do sistema com um partido antissistema por uma questão de atenção e de ter votos.

Como disse, André Ventura votou em José Sócrates, criticava o populismo de Donald Trump, falava sobre migrantes e refugiados de forma empática, censurava a estigmatização de comunidades, defendia a descriminalização do aborto, da eutanásia, da prostituição e das drogas leves. Agora, tem bandeiras discriminatórias contra a comunidade cigana e os imigrantes, defende a prisão perpétua e a castração química, e faz uso de máximas como "portugueses de bem". Foi só uma sede de poder que fez André Ventura moldar-se ao sabor do vento ou há, também, questões relacionadas com a sua própria identidade por detrás do ‘monstro do Frankenstein’ que criou?

Acho que ambos. Menciono um bocadinho do percurso dele ao longo do livro, da adolescência até à universidade, e nota-se que há um conflito. Esse Frankenstein já estava dentro de um caldeirão, por assim dizer, a cozinhar ao longo do seu crescimento. Naturalmente que somos o que vivenciámos e ele não foge à regra. Por exemplo, ele esteve num seminário durante a escola secundária, apaixonou-se, saiu, foi para Lisboa estudar direito, mas manteve-se num ambiente católico. Esteve na Casa de São Nicolau, que é bastante conservadora – tinham missas em latim, usavam cilício – mas, ao mesmo tempo, era um jovem que estava a borbulhar para conhecer outras coisas, mesmo a nível da sexualidade. 

Tinha umas namoradas, traiu algumas, tinha uns amigos mais progressistas, viajou pelo país todo, fez Erasmus, escreveu livros com alguma parafilia. Ou seja, através da juventude dele conseguimos entender que há um conflito interior entre o lado progressista e o lado conservador, que é manifestado no PSD e na criação do Chega. Também percebemos isso com o Chega em si porque, por um lado, ele é favor da IVG, mas, por outro, está a construir um partido com evangélicos e com membros do Opus Dei. A espinha dorsal dele é muito maleável, sim, mas é natural dele; o contraditório convive dentro dele há muitos, muitos anos.

Mesmo que tais frases sejam contraditórias entre si, os grupos não querem saber das outras frases, que são quase ultrassónicas e não conseguimos ouvir. A verdade é que funciona tanto para André Ventura, como para Donald Trump

O que acaba por ser perigoso.

Porque não sabemos o que esperar. Sabemos o que esperar de uma governação PS, de uma governação PSD e, quiçá, até de uma governação Bloco de Esquerda ou Iniciativa Liberal, mas não sabemos o que esperar de uma governação Chega.

E é na comunicação que reside o segredo do sucesso? Como é que André Ventura consegue manter a rede de apoio com todas as contradições?

Há uma expressão na ciência política, que é o 'dog whistle'. Ele assobia para determinadas pessoas e as pessoas ouvem aquilo que querem ouvir, mesmo que outra coisa que ele esteja a dizer a outra pessoa seja contraditória. Ele diz frases que são feitas para determinados grupos e vai distribuindo várias frases certeiras para determinados grupos. Mesmo que tais frases sejam contraditórias entre si, os grupos não querem saber das outras frases, que são quase ultrassónicas e não conseguimos ouvir. A verdade é que funciona tanto para André Ventura, como para Donald Trump. 

Se calhar, quando Trump diz uma barbaridade como ‘they’re eating the dogs’, não cai assim tão mal como nós mostramos. Os meios de comunicação andaram semanas a falar sobre isto, mas Donald Trump venceu em toda a linha e André Ventura sabe disso. André Ventura criticava Donald Trump, criticava a sua forma de comunicar, mas hoje em dia faz exatamente a mesma coisa. 

Nas últimas eleições, segundo as Bases sociais do voto nas legislativas de 2022, houve transferências de voto do PS para o Chega. O que não está estudado e sou eu a supor é que o Chega teve, na parte da economia, uma abordagem com medidas mais estatais, que a IL dizia serem de Esquerda, que conseguiram roubar votos à Esquerda, mas que entraram em contradição com outras medidas e posições. O que acontece é que os pensionistas querem saber do que ele está a dizer para o seu bolso, e não do resto. As pessoas ouvem o que lhes interessa.

Nessa linha, tanto o líder como os restantes membros do Chega expressam o que muitos pensam em privado, mas que, por estigma, não manifestavam publicamente. Agora, essa vergonha social foi legitimada, o que proporcionou um aumento de crimes de ódio e de desconfiança face a imigrantes que sejam membros de grupos minoritários. Além disso, e de acordo com estudos citados no livro ‘Mulheres Invisíveis’, de Caroline Criado Perez, "quanto mais hostis fossem [os homens] contra mulheres, mais probabilidade havia de votarem em Trump". Uma vez que "quase dois em cada três dos eleitores que votaram no Chega são homens", este fenómeno também pode ser transposto à nossa realidade? 

Sim. Nas últimas legislativas houve um aumento de mulheres a votar no Chega mas, quando André Ventura apareceu com o Chega, era uma preocupação para ele que as mulheres não votavam no partido.

Não temos muitas presidentes de Câmaras, não temos muitas mulheres líderes de federações e de distritais dos partidos e, no momento em que é para escolher as listas, pensam, ‘vamos arranjar aqui umas mulheres para meter lá pelo meio’. A política ainda é muito vista como um encontro de negócios, com homens de negócios, num restaurante, a beber CRF e a conversar. Por um lado, o Chega sempre teve dificuldade em arranjar voto feminino, precisamente porque não falava para as mulheres, em primeiro lugar, e porque alberga muitos homens que dizem barbaridades sobre mulheres – como Pedro Frazão com o ‘desconizar’, em relação a Joacine Katar Moreira – e com condenações por violência doméstica. 

Quando André Ventura fala sobre questões de segurança, fala maioritariamente para homens trabalhadores de classe baixa. Hoje já fala para todos, mas antes havia um problema em arranjar voto feminino. [Ainda assim], havia sempre um cuidado em ter candidatos que não falassem mal do sexo feminino.

Sabemos que a política nacional está construída para homens, sem dúvida. Mas é-me difícil dizer se a política interna do Chega está feita para homens ou para mulheres. Ainda assim, sabemos que o que o Chega diz, na generalidade, não é favorável para a mulher se emancipar

Por exemplo, um Youtuber conhecido nestes meandros da direita radical, o Gonçalo Sousa, era um militante com algum peso no partido, com muitos subscritores, com um grande peso de comunicação e podia ter estado num lugar elegível nas listas de deputados. André Ventura colocou-o muito abaixo e perguntei-lhe porquê. Uma das razões foi o voto feminino, pela forma como ele fala sobre as mulheres. Portanto, há um cuidado em tentar captar voto feminino, como houve um cuidado em captar o voto do Porto, quando se reuniu com Pinto da Costa, quando conseguiram arranjar um espaço no Porto Canal.

Há muitas mulheres na direita radical; temos Georgia Meloni [primeira-ministra italiana] e Marine Le Pen [líder da extrema-direita francesa], por exemplo. Em Portugal, é ligeiramente diferente. Temos a Rita Matias, que é uma das principais figuras femininas do Chega, e Cristina Rodrigues, que é cada vez mais outra figura feminina do Chega. As duas têm agendas particularmente diferentes e as duas, a meu ver, têm contributos totalmente diferentes para o que é a mulher enquanto eleitora: a Rita Matias, mulher conservadora e católica, fala muito sobre 'tradwives' e o direito de as mulheres serem donas de casa; e a Cristina Rodrigues, que veio do PAN, é feminista, é a favor da descriminação da IVG, não é católica, tem uma agenda animalista que está a puxar dentro do partido.

Sabemos que a política nacional está construída para homens, sem dúvida. Mas é-me difícil dizer se a política interna do Chega está feita para homens ou para mulheres. Ainda assim, sabemos que o que o Chega diz, na generalidade, não é favorável para a mulher se emancipar e ter a liberdade de fazer o que quiser.

A verdade é que, sem sequer ser nada nesta vida no que toca à política, André Ventura fez manchetes durante semanas. Enquanto jornalistas, temos a responsabilidade de respirarmos fundo e colocarmos este tipo de fenómenos no seu devido espaço

De acordo com os testemunhos que recolheu, André Ventura não lê os programas eleitorais do próprio partido e baseia-se em "ideias que ficam bem em títulos de jornais". De facto, quando é confrontado – tal como a maioria dos populistas – volta aos temas ‘fáceis’ e não tem propostas com substância. Uma vez que a desconfiança nas instituições e no jornalismo são crescentes, como é que podemos combater a desinformação propagada pelo Chega, inclusivamente nas redes sociais, onde não há escrutínio?

Em primeiro lugar, aumentarem os salários aos jornalistas. Temos de melhorar a situação de precariedade do jornalismo e o modelo de negócio jornalístico. Quando André Ventura apareceu, em 2017, na Câmara de Loures, ele sabia que as redações e que as equipas da atualidade dos jornais são compostas muitas vezes por jovens, ou que acabaram de sair da universidade, ou que ainda têm muito para crescer, e que o que lhes era mandatado na altura era ter números ao máximo. Ele sabia que, se dissesse uma frase provocadora como candidato autárquico de um dos principais partidos da nossa democracia, teria um impacto como teve agora, por exemplo, Ricardo Leão.

Se Ricardo Leão quisesse sair [do PS] para criar o seu próprio partido, não ficaria assim tão surpreendido – não que ache que vá acontecer, porque Ricardo Leão é muito diferente e tem um peso muito diferente do que André Ventura tinha no PSD. Mas André Ventura sabia que podia instrumentalizar o jornalismo para tornar a sua figura importante, apesar de não ter qualquer tipo de importância eleitoral.

Como jornalistas, damos atenção aos partidos mediante a sua fatia, a sua parcela eleitoral. Naturalmente que não vamos dar ao PAN a mesma atenção que damos ao PS, o partido da oposição. A verdade é que, sem sequer ser nada nesta vida no que toca à política, André Ventura fez manchetes durante semanas. Enquanto jornalistas, temos a responsabilidade de respirarmos fundo e colocarmos este tipo de fenómenos no seu devido espaço.

Quando estamos a refletir uma frase daquelas ["Os ciganos vivem quase exclusivamente de subsídios do Estado", em entrevista ao jornal i, em 2017], poderemos estar a fazer eco do que está a ser dito. O que ele disse foi grave, o que ele disse sobre a minoria em si tinha problemas no que toca à factualidade. Podemos dar notícia, acho que devemos, mas devemos dar o contexto. Temos de pensar que, antes de sermos pessoas de negócios, somos jornalistas. Agora que o Chega tem 50 deputados, temos de dar a parcela que têm, temos de escrever sobre o Chega mas, se André Ventura diz uma mentira – e diz com alguma frequência – temos de dar o contexto. Temos de ser o agente da democracia.

Até ao poder, ele muda aquilo que for preciso. O próximo patamar é ter um cargo executivo. O que ele quer é eleger um governo. Luís Montenegro não é parvo nenhum e sabe perfeitamente que fazer acordos com o Chega é fazer acordos com uma piranha

A mudança na retórica de que o partido "vale por si próprio", para o apelo, em 2024, para entrar um Governo do PSD "em nome da responsabilidade" é indicativa da sede de alcançar o poder a qualquer custo ou, por outro lado, da perceção de que a sociedade pode em breve ‘acordar’ para as mentiras contadas ao longo destes anos?

É sede de poder. Eles estão mortinhos para integrar um governo, por vários motivos. O primeiro é porque, mal entrem no governo, entram noutra liga, entram numa liga em que podem adicionar outro patamar de voto e de legitimidade. O livro ‘Como Morrem as Democracias’ dá alguns exemplos de como políticos e partidos políticos clássicos, ao darem a mão a fenómenos extremistas, – na década de 1930, quando deram a mão a Adolf Hitler, por exemplo –, concedem-lhes um carácter legitimador. Há um carácter legitimador quando agentes políticos, ex-presidentes, figuras de Estado dão a mão a líderes populistas que ainda não têm parcelas grandes do voto.

Neste momento, o Chega tem 18%, que conseguiu com uma escalada. Tinha 1%, começou a tentar roubar votos ao CDS, e André Ventura dizia-me isso claramente. Primeiro, entrar no Parlamento, com populismo, ciganofobia, frases bombásticas. Depois, matar o CDS. Na primeira legislatura de André Ventura, ele podia ser um deputado do CDS com frases bombásticas. Roubou a parcela do CDS e ficou-lhe com os votos. Próximo passo, roubar votos ao PSD e ao centro. Em 2024, conseguiu 50 deputados e tirar pessoas da abstenção. Até se moderou, num determinado momento da campanha. Até ao poder, ele muda aquilo que for preciso. O próximo patamar é ter um cargo executivo. O que ele quer é eleger um governo. Luís Montenegro não é parvo nenhum e sabe perfeitamente que fazer acordos com o Chega é fazer acordos com uma piranha, alguém que o quer comer.

Daí que diga que quer primeiro-ministro, mas ao mesmo tempo foi candidato às presidenciais e até se equaciona que poderá vir a encabeçar a lista do Chega para Lisboa nas eleições autárquicas.

Sim. Ao mesmo tempo, ele também sabe que há um lado sombrio de ser sempre ele o candidato. Ele já me disse numa entrevista que há um potencial de saturação da sua imagem que, a médio prazo, pode levar a uma saturação do próprio partido e forçá-lo a sair da liderança.

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Pegando nessa questão, e uma vez que o Chega é um partido anti-quadros que tem navegado à mercê da intuição e improviso de André Ventura, que se tem visto a braços com várias guerras civis pelo fosso ideológico entre membros, além de polémicas por assinaturas falsas para a sua criação, sobreviverá e comprovará que realmente "vale por si próprio" caso o líder o abandone?

Se André Ventura não fosse líder, conseguíramos perceber quanto é que o Chega vale por si próprio. Neste momento, acho que não. Talvez no futuro, se André Ventura e o Chega tiverem essa vontade, porque já se aperceberam que o Chega é um partido unipessoal. Ele é uma espécie de Geert Wilders [líder do Partido pela Liberdade, dos Países Baixos] português, que leva a cabo um ‘one man show’.

Já temos alguns protagonistas na televisão, mas isso não basta. É preciso ter vontade de encontrar melhores quadros para roubar aos outros partidos as terceiras linhas. Se André Ventura tivesse essa vontade, talvez o Chega conseguisse sobreviver. Como está, não. Vimos isso até certo ponto nas eleições europeias. André Ventura entrou na campanha mais tarde e teve 9.79%, o que é uma descida brutal para quem teve 18% em março. O partido precisa e está completamente dependente do seu líder.

Considera que o Chega acabaria por se autodestruir por dentro num Governo?

Pois, não sei. O pós-populismo é exatamente esse fenómeno que contempla os partidos de direita radical já no Governo. Num cenário pós-populista, ainda não sabemos muito bem o que esperar. É muito imprevisível; o que é a verdade hoje amanhã pode ser mentira. Olhando para lá fora, há vários casos em que mudaram até um certo ponto, mas há outros que cumpriram efetivamente com o que prometeram e mudaram a Constituição para prolongar mandatos.

Estar no Governo, além de ficar legitimado, vai ter um efeito concreto no panorama político do partido: ou se modera, ou cumpre com o que tem vindo a dizer e muda efetivamente as regras da democracia. Não se espere que, só por integrar o Governo, se modere. Temos o exemplo de Donald Trump: só porque não mudou a democracia no primeiro mandato, não significa que agora não vá acabar com ela.

Tinha a noção de que ele poderia ser eleito deputado, em 2019. Agora, que cresceria para 50 deputados? Se me dissessem em 2019 que ele teria 50 deputados, ficaria de boca aberta. Mas sabia que, a partir do momento em que foi eleito, cresceria, porque teria legitimidade para aparecer nos jornais

A nível interno, sabemos que o Chega é um partido conflituoso. Nas autárquicas elegeram vários vereadores que se demitiram ou perderam a confiança. Hoje, alguns já estão noutras forças políticas. Desta vez, o próprio André Ventura está a ter cuidado em selecionar os quadros precisamente por causa do que aconteceu – perdeu cerca de metade dos vereadores, o que mostra o carácter volátil e conflituoso daquele partido.

Se chegar ao Governo, ou as principais figuras se tornam ministros e tudo acontece consoante a Direção Nacional, levando a uma guerra de protagonismo, ou, o que acho mais provável, André Ventura escolhe pessoas de fora para ministros. Neste cenário, as pessoas da Direção Nacional criariam mais uma guerra civil, que foi o que aconteceu nas legislativas.

O crescimento do Chega surpreendeu-o? 

Fiquei surpreendido porque, quando me meti nisto de escrever sobre André Ventura e a direita radical, tinha 23 anos. Fazia parte da secção online da revista Sábado, passava a maior parte do tempo a fazer fotogalerias sobre gatinhos e coisas aleatórias. Quando surgiu o fenómeno, não sabia muito bem como lidar com ele. À medida que o tempo foi passando, fui crescendo com o fenómeno como pessoa e como jornalista. Dizem muitas vezes que o jornalismo é crescer a olhar para o mundo.

No meu caso, foi crescer a olhar para este fenómeno. Tinha a noção de que ele poderia ser eleito deputado, em 2019. Agora, que cresceria para 50 deputados? Se me dissessem em 2019 que ele teria 50 deputados, ficaria de boca aberta. Mas sabia que, a partir do momento em que foi eleito, cresceria, porque teria legitimidade para aparecer nos jornais e ter um espaço na agência Lusa.

Porque é que decidiu focar a sua investigação no Chega?

Por um motivo egoísta e por um motivo não egoísta. Queria crescer no jornalismo. Como jornalista, não há nada melhor do que sentir que este tópico é a minha especialidade. As pessoas olham para este tópico e associam que esta pessoa sabe do que está a falar. Sempre achei muito fascinante a figura do vilão, tentar compreendê-lo. Quando esta persona política deu a entrevista ao jornal i e disse que os ciganos vivem exclusivamente do Estado, pensei, ‘porque é que ele foi dizer isto?’.

É um tópico que adoro e pelo qual me interesso bastante desde pequeno. Houve um incremento enorme da extrema-direita e da direita radical na Europa durante o meu crescimento e tinha ali a oportunidade de perceber como é que era o fenómeno em Portugal. Aqui falava-se do excecionalismo ibérico mas, em 2019, acabou-se em Espanha, e em Portugal também. A partir daí, nunca mais larguei o osso e quero ser uma figura de referência neste tópico. Quero chamar à atenção e, por outro lado, quero dar o meu contributo à democracia.

Sempre se falou dos ciganos entre quadro paredes ou no café. Ao ser eleito, Ventura tirou as pessoas da vergonha. Como disse Pedro Nuno Santos [secretário-geral do PS], quem votou não são um milhão de racistas. A verdade é que vivemos mal em Portugal e se os partidos não acordarem para isso, o Chega vai continuar a crescer

Já tínhamos vários fenómenos extremistas, como o Partido Nacional Renovador (PNR) [atual Ergue-te] e a Frente Nacional, por exemplo. Havia procura e os académicos, os jornalistas e a maior parte das pessoas assumiram que existia o excecionalismo ibérico, [porque] Portugal passou muitos anos em ditadura e tem uma memória demasiado viva. Estivemos enganados; havia procura e havia sinais dessa procura, com a eleição de António Marinho e Pinto [antigo eurodeputado e fundador do Alternativa Democrática Nacional], com a abstenção crescente e com a erosão dos partidos tradicionais. Ao contrário de outros países, não foi tanto a questão da imigração [que promoveu estes fenómenos], foi a corrupção. Havia uma tempestade perfeita para alguém criar a oferta.

O Chega é um partido que pega nas bandeiras que estão a ter popularidade e que até rouba coisas à Esquerda; o PNR não. O PNR é de extrema-direita, é subversivo. O Chega quase que pisca o olho a regras democráticas e foi criado por um antigo vereador do PSD. Pedro Passos Coelhos e vários dirigentes locais legitimaram André Ventura nas autárquicas de 2017 e é por isso que é tão importante as figuras e os partidos com poder não legitimarem figuras antidemocráticas. Aconteceu e 2017 e pode voltar a acontecer.

Houve uma normalização da direita radical na Europa; em Portugal também. Havia essa procura, mas estava adormecida. Havia vergonha. Sempre se falou dos ciganos entre quadro paredes ou no café. Ao ser eleito, Ventura tirou as pessoas da vergonha. Como disse Pedro Nuno Santos [secretário-geral do PS], quem votou não são um milhão de racistas. A verdade é que vivemos mal em Portugal e se os partidos não acordarem para isso, o Chega vai continuar a crescer.

E em que é que André Ventura acredita, afinal? Chegou a alguma conclusão?

Ele tem opiniões. Já faço política há algum tempo, já jantei, já almocei, já bebi copos com políticos e parece-me que André Ventura é dos mais porreiros para beber copos. É genuinamente divertido, normal, não tem nada a ver com a persona política. É uma figura, até certo ponto, socialmente afável, e tem opiniões.

O ‘monstro’ que chama aos jornalistas inimigos do povo, que descredibiliza as instituições democráticas, que é xenófobo e racista é o André Ventura persona. O André Ventura cidadão poderia muito bem estar inserido num PS ou num PSD. Nem sei se quando vai às urnas vota no PS ou no PSD, ao olhar para o que ele é. O André Ventura líder do Chega não tem nada a ver com o André Ventura cidadão e, a beber copos, até gozava com a sua própria hipocrisia.

É preciso melhorar a vida, é preciso melhorar a saúde da nossa democracia, e para isso é preciso que os partidos tradicionais façam alguma coisa. Depois de tantos anos a trocar de cadeiras e a não fazer nada, está na hora de fazer qualquer coisa

Contaram-me que, num evento, ele já estava com uns copos a mais e começou a dar umas dicas de como comentar futebol, quando ainda era conhecido por ser comentador do Benfica. Uma das coisas que ele disse foi que era um teatro, que era só mandar uma larachas e negar nos debates. Mas uma pessoa falseia tanto que a mentira torna-se verdade. Ou seja, se calhar hoje em dia [as facetas] já se misturaram e ele já não consegue entender onde é que começa e onde é que acaba a persona.

Qual é a principal conclusão que tira em relação à política portuguesa neste momento e no futuro?

Vive-se mal em Portugal. A vida está mais cara, as rendas são impossíveis. Um jovem que queira viver fora de casa dos pais divide casa; se quer acabar um namoro pensa duas vezes, ou acaba e continua a dividir casa com o ‘ex’… A vida em Portugal não está para os portugueses e vai continuar a ficar cada vez pior. Ainda existe o bipartidarismo em Portugal; o PS e o PSD ainda são os partidos do poder.

Até se poderia vencer eleições com o voto envelhecido em Portugal, mas se não se arranjarem soluções reais para outras camadas, como por exemplo os jovens, os adultos de classe média e trabalhadores, se não se melhorar a questão da habitação, das infraestruturas, da retenção de talento em Portugal, da atração de investimento, para que se possa criar riqueza, as pessoas vão virar-se para os extremos e vão votar nos partidos dos extremos. Uns porque acreditam que há ali uma maneira de romper com um sistema que não lhes serve, outros por protesto.

A mensagem dos 18% nas legislativas foi clara: há muita gente que está farta e há um fundo de verdade no que diz o Chega. O fundo de verdade é que a democracia está mal. Há um estudo de 2021 do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa que indica que só 10% dos portugueses acredita viver em democracia plena. É preciso melhorar a vida, é preciso melhorar a saúde da nossa democracia, e para isso é preciso que os partidos tradicionais façam alguma coisa. Depois de tantos anos a trocar de cadeiras e a não fazer nada, está na hora de fazer qualquer coisa.

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