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"Muitas vezes, sofrimento não encaixa em listas de doenças psiquiátricas"

Rui Lopes, psiquiatra e poeta, que acaba de lançar o livro 'Cintilar', é o convidado do Vozes ao Minuto desta quarta-feira.

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© Rui Lopes

Carmen Guilherme
20/11/2024 07:51 ‧ há 4 semanas por Carmen Guilherme

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Rui Lopes é licenciado em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e especializou-se em Psiquiatria e Saúde Mental no Centro Hospitalar Universitário de São João. 

 

É autor e coautor de vários artigos científicos em revistas especializadas na área da Psiquiatria e atualmente exerce atividade clínica no Hospital Lusíadas – Braga, bem como atividade académica na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. A par de tudo isto, já lançou três livros de poesia, definindo-a como uma "catarse subliminar", que leva para as suas consultas através da poetoterapia. 

Ao Notícias ao Minuto o psiquiatra explica que método de psicoterapia é este e justifica que, "muitas vezes, o sofrimento humano não se encaixa em listas de catálogos de doenças psiquiátricas", "é muito individualizado" e é "nessa variabilidade interindividual" que procura enquadrar um poema para cada paciente, tentando assim "mobilizar as emoções" que, às vezes, estão "congeladas". O objetivo é não só procurar "novas formas de ver o mundo", mas também "caminhos mais saudáveis para o sofrimento". 

Habituado a trabalhar com perturbações do humor e da ansiedade, admite que a sociedade "necessita de literacia em saúde mental", que deve ser "analisada em todas as vertentes". Defendendo que "há muito por cumprir" no Plano Nacional para a Saúde Mental, o psiquiatra sublinha ainda que uma "grande franja da população acabará por andar cronicamente ansioso" porque "não procura ajuda", "porque não tem informação suficiente ou porque o acesso é muito precário". 

Comecemos pela grande questão desta entrevista. Nas suas consultas, implementa a Poetoterapia. Que método de psicoterapia é este?

A poetoterapia é uma forma de psicoterapia que utiliza a poesia. É uma arte plástica que utiliza a palavra, os poemas, e, no fundo, pode ser utilizada de uma forma organizada ou metodologicamente organizada ou de uma forma empírica, que é o meu caso. Também tenho outras formações, outras psicoterapias. Normalmente, utilizamos um modelo de psicoterapia mais adaptado ao doente que estamos a ver em consulta. A poetoterapia surge como uma ferramenta adicional dentro das outras vertentes psicoterapêuticas porque permitirá em alguns pacientes com uma capacidade mais sensível, digamos, pelo uso de um poema, das palavras, mobilizar as emoções que estão, às vezes, um bocadinho congeladas digamos, pela própria doença, como na depressão, que é a doença psiquiátrica mais prevalente.  Além disso, permite fomentar a relação médico-doente de uma forma mais profunda ou empática. 

O paciente pode, às vezes, pela primeira vez, conseguir que alguém compreenda o que está a sentir no estado de alma, porque a poesia tem essa grande capacidade de multiplicar os sentidos

E consiste apenas na leitura de um poema? Como funciona?

Através da identificação do estado emocional em que o paciente se encontra, há a escolha de um poema em que esse paciente se possa se transfigurar e, através da leitura em conjunto ou leitura no silêncio do doente, o doente consegue mobilizar as emoções e sentimentos que estão demasiado hibernados. Desta forma, há um momento de catarse, pode ser uma catarse até terapêutica. O paciente pode, às vezes, pela primeira vez, conseguir que alguém compreenda o que está a sentir no estado de alma, porque a poesia tem essa grande capacidade de multiplicar os sentidos e as múltiplas formas de ver as palavras. E essa leitura é sempre individual.

Basicamente, eu identifico o estado de alma em que o paciente se encontra e escolho um dos meus poemas, dos três livros que tenho.

São sempre os seus poemas? 

São sempre os meus poemas. Eu conheço os meus poemas muito bem, inclusive os estados de alma em que os escrevi, por isso, tenho essa facilidade de poder encontrar nas reticências dos silêncios, das palavras que os próprios pacientes utilizam, ou até da linguagem não-verbal, a identificação ou sobreposição com esses poemas. Basicamente, dou-lhes o livro para a frente dos olhos e digo-lhes 'olhe talvez queira ou tente expressar-se desta forma. Vou pedir-lhe que leia este poema e comente comigo o que sente ao lê-lo'.

 Muitas das vezes, o sofrimento humano não se encaixa em listas de catálogos de doenças psiquiátricas, o sofrimento humano é muito individualizado (...) e é nessa variabilidade interindividual que procuro enquadrar um poema

Só aplica este método em doentes que sentem que podem gostar de poesia? Não sei se já sentiu resistência de alguns pacientes… 

Normalmente, esta modalidade nunca é utilizada numa primeira consulta, mas sim no decorrer das consultas, quando já existe alguma confiança terapêutica e servirá para fomentar e validar a relação empática, que deverá ser uma relação de confiança, segura, em que o paciente sente que está a ser ouvido, compreendido, de forma sigilosa, que isso é o que se pretende num espaço de consulta geral, de psiquiatria geral. Normalmente, os temas são referentes à intimidade das pessoas.

É evidente que eu também tenho formação noutras áreas psicoterapêuticas, a mais conhecida a cognitiva ou comportamental. Esta vertente da poetoterapia é uma vertente muito mais pessoal, da minha natureza como poeta, em que eu uso esta minha arma, a sensibilidade que já cresceu comigo. E, sendo uma forma de arteterapia, permite-me ir mais além na relação empática com os pacientes. Muitas das vezes, o sofrimento humano não se encaixa em listas de catálogos de doenças psiquiátricas, o sofrimento humano é muito individualizado, parte sempre das circunstâncias internas e externas de cada ser humano, e é nessa variabilidade interindividual que procuro enquadrar um poema. Às vezes, é um momento catártico interessante. Surgem lágrimas num paciente que já não chora há semanas. É um dos sintomas, por exemplo da depressão, os doentes referirem que têm lágrimas secas.

Consigo perceber empaticamente o que é que nas reticências os pacientes querem tentar exprimir

Quando é que percebeu que poderia aliar este gosto/talento à sua formação académica e científica? 

É uma pergunta interessante. Isso parte do pressuposto que a linguagem, que é uma das ferramentas humanas que permitiu até desenvolver o córtex mais evoluído do ser humano, sobretudo com a passagem de conhecimento, das ferramentas do dia a dia. Ora, a linguagem falada ativa várias áreas cerebrais, por exemplo, a vocalização. O córtex motor é ativado quando produzimos um som pelas cordas vocais. Estamos a pensar e estamos a produzir. Portanto, estamos a pensar em significados e estamos a transmitir por significados que, neste caso, são os sons. Mas a linguagem escrita será ainda mais poderosa, porque envolverá a capacidade criativa. Isto é, quando estamos a escrever é um ato falado escrito, muito mais profundo, que, pela via do onirismo, da imaginação ou da intuição criativa, permite ativar várias áreas do cérebro: as emoções, a memória, as partes motoras. Ao falarmos estamos, evidentemente, a vocalizar e a utilizar as cordas vocais, os músculos da face, podemos até gesticular, mas ao escrever estamos a utilizar as mãos, que são também um dos grandes desenvolvimentos antropológicos do ser humano.

Eu próprio senti na poesia a necessidade de fazer essa catarse do caos do mundo interior ou exterior e, como escrevo muitas vezes sobre temas sobre a ansiedade e depressão de mim próprio, consigo perceber empaticamente o que é que nas reticências os pacientes querem tentar exprimir. Quando há uma maior intimidade ou confiança, a poesia poderá ser um elo de ligação mais profundo, mais espiritual, se podemos dizer.

Já escreveu três livros, o último com o nome 'Cintilar'. O que me está a dizer é que estes livros, no fundo, também são a sua própria terapia? 

Sem dúvida! Eu escrevo mais ou menos desde os 14, 15 anos. Fui influenciado pelas leituras dos programas da língua portuguesa, dos nossos grandes poetas, do Fernando Pessoa, do Camões e por aí fora. Senti na poesia um refúgio desde as chamadas crises de adolescência ou as chamadas crises de amor, por assim dizer. Foram escritos para a gaveta durante muitos anos. A partir do momento em que fui evoluindo também como ser humano, a complexidade dos temas que fui escrevendo sobre o mundo à minha volta e sobre as minhas experiências também íntimas e afetivas, acabei por descobrir na poesia um meio catártico para perceber melhor a questão do amor. Portanto, penso que a poesia é necessária e é preciso para um mundo ser mais belo.

O primeiro livro, chamado 'Flor', foi escrito sobre o subtítulo de amor e esperança. Tem quatro capítulos sobre o amor sonhado, o amor vivido, o amor perdido e o amor próprio, que é preciso voltar a reencontrar para voltar a reamar. O segundo, 'O Cântico do Cisne na Alvorada', é uma espécie de um grito à liberdade. E este último, o 'Cintilar', como o último da procura do amor, perfeição pela via do amor, será então o conjunto que o eu poético procura incessantemente procurar na beleza do amor, a busca da perfeição do ser humano, quase como uma via para a espiritualidade ou transcendência da vida.

Estamos, permanentemente, em movimento. A dinâmica do ser humano é a de renascer todos os dias

Divide este último livro em nove capítulos e fala numa metáfora para os nove meses de gestação. É também assim que olha para os seus pacientes? Como alguém que precisa de renascer? 

Estamos, permanentemente, em movimento. A dinâmica do ser humano é a de renascer todos os dias. O ser humano tem a capacidade de pensar sobre o passado, ao contrário, provavelmente, de outras espécies animais, mas o presente renasce todos os dias com a esperança de um futuro melhor. Os pacientes, às vezes, nas consultas, têm uma dimensão do tempo distorcido deles próprios, o chamado tempo vivido. Por exemplo, na depressão, que é uma das doenças mais frequentes, o tempo pessoal, o tempo vivido, está muito lentificado ou petrificantemente lentificado e os ecos dos ponteiros desse relógio podem até sentir-se como agulhas de sofrimento. Portanto, a pessoa sente que ia num comboio da vida e, de repente, parou relativamente aos outros. Ora, o renascer do próprio, muitas vezes através de um caminho de sofrimento, poderá ser muito mais bem conseguido de uma forma, digamos mais completa, se for acompanhada.

Esse caminho de crescimento ou de procura de eu próprio, no fundo, todos os dias, acaba por ser um renascimento. Quando se está doente e se renasce para a cura ou para o bem-estar da saúde mental, quer-se que esse sofrimento, esse caminho, seja, naturalmente, feito com a ajuda de um profissional, e que o paciente adquira ferramentas que lhe permitirão procurar mais novos caminhos e saber onde é que estão exatamente as ferramentas se os caminhos difíceis voltarem a aparecer nessa estrada de renascimento contínuo.

Voltando aqui à forma como aplica a poetoterapia, creio que podemos dizer que, em alguns casos, a escrita pode ser bastante complexa e nem todos, enquanto seres humanos, termos uma capacidade de interpretação brilhante. Fica algum tempo a desconstruir o poema com o doente? Qual é que acaba por ser também o seu papel?

Claro! Primeiro de tudo, o poema terá de ser escolhido muito bem para a situação clínica do paciente, até porque pode ser iatrogénico, digamos assim. Iatrogénico é quando se aplica uma terapêutica ou um medicamento que pode até fazer mal. Portanto, em termos éticos, um médico nunca poderá, na sua atividade, utilizar algo que seja pernicioso ou fazer mais mal do que bem, como se costuma dizer. A vantagem de ser eu próprio escritor dos poemas é que, em princípio, conseguirei ter sempre a mensagem última. Mas a poesia tem essa grande vantagem, é que poderá ser olhada por vários ângulos. É como uma escultura, no fundo, uma pintura, cada um interpretará as cores e as emoções que essas cores podem elevar na sua alma.

Mas, um poema com características melancólicas, por exemplo, ajudará o paciente a perceber que um filtro de nuvens mais cinzentas, em que um olhar da vida naquele momento está, poderá ser reaberto. Portanto, a maioria dos meus poemas têm sempre um final de esperança, procuro ter sempre esse cuidado, mesmo num poema mais triste. É o tal renascer que eu procuro também com os meus poemas, a procura de novos significados, novas formas de ver o mundo e, sobretudo, caminhos mais saudáveis para o sofrimento.

Comigo em terapia é um momento seguro porque, normalmente, as mensagens do poema são muito bem trabalhadas. Quando há certas interrogações, eu próprio estou ali para poder naturalmente catalisá-las. Às vezes, surgem coisas interessantes porque estou todos os dias a aprender como psiquiatra, como ser humano e acabo também a ser surpreendido por algumas outras interpretações, belíssimas, aliás, que os próprios pacientes fazem -  isso é também uma prerrogativa para continuar a sentir-me bem a fazer esta técnica, e volto a referir, de uma forma empírica, nada estruturada ou organizada como dizem os manuais da poetoterapia. Vejo bons resultados, alívio, um reforço da empatia. As pessoas, naturalmente, sentem-se validadas e compreendidas e ficam com um bichinho também de ler poesia.

Há pessoas que podem não estar preparadas porque estão encapsuladas em sintomas

E quando sente que não consegue chegar a um paciente? Ou seja, quando o próprio psiquiatra, neste caso, sente que falha, quando o paciente não recebe a mensagem como seria esperado… é também necessário conseguir lidar com as próprias falhas, correto?

Com certeza, com certeza. Mas essa humildade da falha até permite viver uma melhor relação empática entre médico e paciente. O meu discurso é muito metafórico, muitas vezes. É evidente que eu não poderei utilizar um discurso muito metafórico ou incendiador de procura de significados num momento muito deprimido, evidentemente que não. Eu sou, primeiro de tudo, um psiquiatra, académico, investigo, faço investigação académica, mas procuro naturalmente valer-me de uma sensibilidade que eu veiculo na própria poesia, que é uma característica inerente à minha pessoa.

O meu discurso é também sempre muito cuidado, apropriado à circunstância pessoal de cada paciente, à sua educação, aos seus valores, ao contexto socioeconómico. Há pessoas que podem nem sequer ter o alcance da poesia porque nem sabem ler. Sempre que há uma sensação de falha ou de que não consigo estar a alcançar pelas palavras a mensagem que quero transmitir ao paciente, há outras armas, nomeadamente o olhar, o tom de voz, apenas o ouvir.

Há pessoas que podem não estar preparadas porque estão encapsuladas em sintomas, por exemplo, a frustração, a raiva, o burnout. É evidente que a poetoterapia não poderá ser sacudida ou utilizada assim: 'olha, vamos fazer isto?' Tem der ser sempre muito bem escolhida, num ambiente apropriado. Aproveito o olhar perspicaz que os pacientes me devolvem quando eu uso uma metáfora no discurso. Aí, talvez diga, 'bem, talvez o paciente possa ser ajudado através de um poema'. E é mesmo assim. 

Neste livro encontramos vários nomes ao longo dos diferentes capítulos, parecem até uma dedicatória. Já me disse que escreveu sempre a pensar naquilo que também sentia, mas eu acredito que muito daquilo que sente também é aquilo que vive e recebe dos seus pacientes.

Sim, os nomes são naturalmente dedicatórias a momentos que passei com amigos. Poderá ter aí um ou outro paciente, não vou divulgar nomes, mas tem sempre simbolismos. São momento passados, são mensagens claras, as quais os remetentes percebem perfeitamente bem e eu nutro muito as relações familiares e de amizade que tenho. Alguns pacientes acabam por se tornar meus amigos, alguns pacientes meus até são poetas também. No fundo, é uma forma de homenagem e servirá para eternizar a cápsula do tempo que eu acho que é o que representa a amizade. 

Tocou aí num ponto interessante. Diz-se que os terapeutas não podem ser amigos dos seus pacientes. Essas amizades de que fala nascem quando já não há aqui uma relação entre médico e paciente ou a que se refere?

É evidente que a relação médico/doente é uma relação especial e que poderá incluir mesmo uma relação de amizade. É muito frequente os pacientes perguntarem como é que estamos, como é que estão os filhos, como é que está a terra, enfim, todas essas questões próprias da natureza do ser humano. Estou a falar como médico. Agora, como psiquiatra, os temas são tão íntimos que acaba por haver uma relação de natureza de confiança mais estreita. Muitas vezes, os pacientes vêm a miúdo às consultas partilhar as suas vivências, as suas dificuldades de adaptação da vida. Claro que há limites. Eu não posso, por razões éticas, conferenciar muito a minha vida pessoal, não posso confraternizar um encontro. Há limites que a ética, assim o manda, porque, depois, não poderei exercer como terapeuta os trabalhos de casa, as indicações, ter uma certa neutralidade. A capacidade neutra de avaliar as situações de vida que os pacientes me trazem à consulta só é conseguida se houver um certo afastamento.

Agora, quando digo amizade, digo cordialidade... É talvez a palavra mais mais correta. Mas como eu tenho doentes há mais de 10, 15 anos, essa cordialidade já é mais próxima. Alguns pacientes poderão ter alta, mas estabelece-se sobretudo uma relação humana. Isso é que é importante frisar, uma relação empática e humana.

A saúde mental deverá ser analisada em todas as vertentes da sociedade

Gostava de falar consigo, de uma forma mais alargada, sobre saúde mental. Quão importante é desmistificar esta questão?

Toda a nossa sociedade necessita de literacia em saúde mental, no sentido de as pessoas saberem cada vez melhor que estão doentes, que precisam de procurar ajuda, os diagnósticos serem mais precoces. A saúde mental deverá ser analisada em todas as vertentes da sociedade, quer seja nas escolas, quer seja nos locais de trabalho, quer seja nas nossas vidas pessoais. A relação entre a qualidade de vida, o tempo de trabalho, o burnout, são tudo características que, na nossa sociedade atual, imprimem uma pressão ao ser humano e que vão acabar por influenciar a nossa saúde mental.

Ainda há pouco tempo tivemos o dia da saúde mental, que este ano foi precisamente direcionado para a saúde mental no local de trabalho. As empresas públicas e privadas que tiverem um interesse e uma preocupação com a saúde mental dos seus trabalhadores sabem precisamente que os trabalhadores com saúde mental são trabalhadores mais produtíveis, haverá mais capacidade de trabalho, menos tempos de baixa, mais saúde, no fundo um sentido de concretização, de realização pessoal para com os trabalhadores. O local de trabalho deve ser um local de saúde e não um local de permanente burnout a que, infelizmente, temos assistido em vários setores. 

A saúde mental é um conceito muito lato que envolverá uma sensação de saúde física, psicológica, felicidade e concretização pessoal, de realização pessoal e, portanto, no fundo, um sentido harmonioso com a vida do ser humano, completa e com o sentido de pertença à comunidade em que vive.

O que eu tenho assistido é que no intermédio de aparecimento destas doenças psiquiátricas há muitos estados de burnout

Trabalha, sobretudo, com depressão e perturbações da ansiedade. Nota um procura crescente? Parece que as pessoas estão também mais conscientes sobre estas doenças?

Sim, sem dúvida que a questão da covid-19 veio mexer as águas. O que eu verifico como psiquiatra é que, face às grandes dificuldades socioeconómicas que o nosso país apresenta, e não só o nosso país, a Europa, o mundo, as guerras, todas estas dificuldades em que nos basta ligar a televisão e absorver, fazem, naturalmente, aumentar a nossa ansiedade, que existe no ser humano como valência de sobrevivência. Claro que se for vivenciada ou espoletada em certos limites patológicos torna-se perniciosa.

Face a estas grandes dificuldades, quer seja na dificuldade de acesso à saúde, quer sejam as dificuldades na educação, na parte da habitação, a questão dos empregos jovens, as questões da imigração, tanto para o exterior como para o interior, tudo isso leva a muitas preocupações e todos estes fatores são fatores clássicos para aparecerem, digamos, doenças psiquiátricas.

O que eu tenho assistido é que no intermédio de aparecimento destas doenças psiquiátricas há muitos estados de burnout. Há maior procura nas consultas de pacientes com perturbações de reação, perturbações de adaptação e que se não forem naturalmente procurar ajuda acabará por instalar-se em doenças psiquiátricas, nas patologias da ansiedade, nas patologias depressivas.

Uma grande franja da população acabará por andar cronicamente ansioso, não procura ajuda porque não tem informação suficiente ou porque o acesso é muito precário

Ou seja, é logo um alerta. 

Com certeza, com certeza. Portanto, muitas das vezes, excessos de ansiedade levam, a maioria das vezes, em 95% das situações, a problemas de sono. Invariavelmente os problemas de sono poderão levar a que as pessoas não tenham capacidade de recuperação de saúde durante a noite fisiológica, na regulação das emoções e na consolidação das memórias, que é o grande papel do nosso sono, e isso levará a sintomas depressivos secundários. E uma grande franja da população acabará por andar cronicamente ansioso, não procura ajuda porque não tem informação suficiente ou porque o acesso é muito precário.

Ainda há muito por cumprir no Plano Nacional para a Saúde Mental

Nesse sentido, aproveito para lhe perguntar sobre a rede de psiquiatria pública. O que acha que poderia melhorar? Ter acesso à saúde mental não está propriamente ao acesso de toda a gente...

Há um estudo com alguns anos que diz que só um terço dos pacientes com doença psiquiátrica é que procura ajuda e só um terço desses doentes que procura ajuda é que está devidamente bem tratado. Portanto, porquê só um terço dos pacientes procurar ajuda? Naturalmente que as coisas evoluíram, esses números já estão desatualizados, já será um pouco mais, mas tem a ver com a nossa literacia em saúde em geral.

A solução poderá, por exemplo, passar por aulas de cidadania nas escolas com maior sensibilidade para estes temas. Depois, o acesso, que é precário, tem a ver com os recursos. Tanto no setor privado como no setor público, na globalidade, o número de psiquiatras e psicólogos, de acordo com os números médios, cláusulas da União Europeia, são muito inferiores. Não tenho os números certos, mas haverá no Colégio da Especialidade inscritos cerca de 1.200, 1.300 psiquiatras. Destes, só 700 é que estarão no público, mas a União Europeia indica que deveria haver, pelo menos, para os nossos 10 milhões de habitantes, 1.500. Só para se ter uma noção de que realmente falta nos profissionais de saúde, falta nos recursos humanos, nos hospitais e ainda há muito por cumprir no chamado Plano Nacional para a Saúde Mental. Já há medidas que saíram no papel e que já estão a entrar em vigor com a recente formação das ULS e com as chamadas equipas comunitárias de psiquiatria, já está a haver passos importantes, mas tem de haver, de facto, uma preocupação contínua em dar continuidade e persecução a esse plano, que é muito bom, mas que tem, como em outras valências no nosso país, dificuldade de passar de papel para a prática por falta de recursos, dificuldades de gestão.

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