"Muitas organizações do setor social só são coração e esse é o problema"

Patrícia Boura, presidente da Fundação do Gil, é a convidada do Vozes ao Minuto desta terça-feira, 3 de dezembro, dia em que a instituição celebra 25 anos.

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© Tábua Digital/Fundação do Gil

Carmen Guilherme
03/12/2024 08:09 ‧ há 4 semanas por Carmen Guilherme

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Vozes ao Minuto

Passaram-se exatamente 25 anos do nascimento da Fundação do Gil. Desde então, a instituição tem ajudado milhares de crianças através da sua ação, atividades e projetos, sobretudo na área da saúde pediátrica e reintegração social. 

 

Em 2014, e após vários anos a trabalhar no setor privado, Patrícia Boura, que tem formação em Gestão e Finanças, assumiu o cargo de presidente-executiva da Fundação do Gil e é ela que, em entrevista ao Notícias ao Minuto, fala nestas mais de duas décadas de "impacto social". 

Admite que é "fácil olhar para as necessidades da sociedade e criar soluções", mas que a adaptação, o financiamento e a sustentabilidade são essenciais para o sucesso destas organizações - e é aí que está o grande "desafio".  Destaca que "o coração" deve estar "sempre presente", mas que as organizações do setor social não se devem valer só disso, sendo importante levar para cima da mesa a gestão financeira. 

Patrícia Boura fala-nos dos projetos base da Fundação do Gil - a Casa do Gil (que acolhe crianças que se encontram em risco social ou clínico) e os Cuidados Domiciliários Pediátricos (que apoia crianças com doenças crónicas e as famílias) -, mas também dos projetos que continuam a surgir, como a recente Clínica do Gil, que nasceu numa lógica de negócio social e na necessidade de apoiar crianças na área da saúde mental. 

A Fundação do Gil já apoiou mais de 10 mil crianças

A Fundação do Gil está prestes a celebrar 25 anos. Que balanço fazem destas duas décadas, como os próprios dizem, a transformar a vida de crianças e famílias em situação de vulnerabilidade? 

É um balanço muito positivo, muito rico. Acho que, ao longo destes 25 anos, temos tocado a vida de muitas crianças, temos transformado a vida de muitas crianças, acima de tudo, e isso é realmente muito importante. Ao longo destes 25 anos, fomos aumentando o impacto social dos nossos projetos. Hoje, temos cinco projetos, quatro projetos sociais e um projeto de sustentabilidade, para garantir a sustentabilidade precisamente dos outros projetos sociais e tem sido aqui um crescimento sustentado, porque é sempre a grande preocupação destas organizações. Temos crescido muito.
 
Há números? Quantos crianças já foram apoiadas pela Fundação do Gil? 

Sim, garantidamente mais de 10 mil crianças. Nós, na Casa do Gil, já reintegrámos mais de 400 crianças, portanto, significa que elas foram reintegradas nas suas famílias ou em novas famílias, reconstruímos a vida dessas crianças. No projeto de Cuidados Domiciliários Pediátricos estamos a falar de cerca de 10 mil crianças, 10 mil crianças que nós apoiámos nas suas casas, levando o hospital a casa destas crianças e provendo todos os cuidados de saúde necessários. E, agora, mais recentemente, com a nossa Clínica do Gil, que abriu este ano, que é um projeto que tem um par de meses, mas onde já fizemos 500 consultas e a ideia, de facto, é poder apoiar muitas, muitas crianças e democratizar o acesso à saúde mental, porque queremos que este projeto seja um projeto para todos, é um projeto para toda a comunidade. Temos preços de mercado, preços sociais e bolsas sociais. 

 Uma em cada cinco crianças tem já necessidades de apoio na área da saúde mental e apenas 20% das crianças têm o devido acompanhamento

Ia também questioná-la sobre isso. Esta clínica de que fala, dedicada ao desenvolvimento e saúde mental infantil, foi inaugurada este ano. Como é que surgiu a ideia? 

Na verdade, foi a necessidade de ter outro projeto. Foi uma necessidade específica das crianças da Casa do Gil. Na Casa do Gil apoiamos crianças muito pequeninas, dos 0 aos 12 anos, mas percebemos que todas elas estavam muito marcadas com questões de saúde mental, portanto, percebemos que tínhamos de intervir o quanto antes para que elas pudessem ter uma vida equilibrada, digna e sem problemas de maior no futuro. Percebemos que teriam de ter acompanhamento nas várias áreas da saúde mental e em várias especialidades. E não é fácil estabelecer parcerias para apoiar 16 crianças em permanência, com consultas todas as semanas e em várias especialidades e, portanto, pensámos logo que faria sentido um projeto que internamente pudesse dar resposta a essa necessidade. Fomos estudar o panorama e percebemos que, mesmo pelos relatórios da Organização Mundial de Saúde, isto não era um exclusivo das crianças das casas de acolhimento, que uma em cada cinco crianças tem já necessidades de apoio na área da saúde mental e que apenas 20% das crianças têm o devido acompanhamento. Fez-nos todo o sentido desenhar logo o projeto para toda a comunidade e assim foi.

Decidimos criar este projeto nesta lógica de negócio social, onde quem tem dinheiro para pagar as consultas paga ao preço de mercado, como se estivesse a consultar um setor privado normal, um prestador de serviços privado. As famílias da classe média têm acesso a preços sociais, porque aquilo que sabemos hoje é que famílias com um filho ou com dois, se precisam de consultas recorrentes de psicologia, pedopsiquiatria, terapia da fala, às tantas veem os seus orçamentos muito limitados e têm dificuldade em prover este tipo de cuidados aos filhos. E temos ainda uma outra camada que são as bolsas sociais e que todas as crianças da casa do Gil, naturalmente, que é a nossa casa de acolhimento, de outras casas de acolhimento ou de famílias que de facto mais vulneráveis, têm acesso a estes cuidados de saúde mental sem pagar. Nós garantimos esse valor, tentando acionar parceiros empresariais, para facilitar, porque, naturalmente, todos os médicos e terapeutas são pagos pelo seu serviço. 

Sente que ainda há um estigma em torno do assunto? 

Apesar de tudo, temos falado muito sobre isso e acho que, sobretudo, depois da pandemia, o estigma quebrou-se um bocadinho e as pessoas falam mais abertamente sobre a necessidade de dar acompanhamento aos seus filhos, ou porque estão mais ansiosos ou por outras questões de fragilidade emocional e que eles querem, desde logo, acompanhar. Esse estigma existia mais fortemente antes da pandemia e acho que a pandemia ajudou aqui a atenuar. Acho que hoje as pessoas já têm maior à vontade em perceber que isto é um assunto que toca a todos, que é perfeitamente normal e que não são só as pessoas com doença mental que procuram este tipo de apoio e nós queremos contribuir também para acabar com o estigma no sentido em que não fazemos só intervenção, fazemos prevenção. E, além de termos uma grande área de terapias pelas artes, queremos trazer também para a clínica o ioga, a meditação, a massagem do bebé. Ou seja, estas terapias do bem-estar, precisamente para libertar esse estigma da saúde mental.

Muitas organizações do setor social só são coração e esse é que é o problema (...)  o coração está sempre presente, mas a sustentabilidade financeira é determinante para o futuro de qualquer organização

Há pouco falávamos do balanço positivo destes 25 anos, agora, falava também de uma clara adaptação à sociedade. Perguntava-lhe qual é que tem sido a chave do sucesso? Será a gestão? Há uns anos disse numa outra entrevista que o setor social deve ser gerido com a cabeça e não só com o coração, ainda pensa assim? 

Penso, absolutamente, e uma coisa não invalida a outra. Ou seja, eu, quando digo que tem de ser gerida pela cabeça, não é não ser gerida pelo coração. Acho que trazemos sempre o coração para a gestão, até porque somos seres humanos e a razão não funciona sem o coração, mais a mais numa área social. A diferença é que muitas organizações do setor social só são coração e esse é que é o problema, porque quando só gerimos com o coração e não trazemos esta parte da gestão financeira e dos números e das contas e deste rigor, o projeto vai abaixo. No fim do mês é preciso pagar contas, é preciso pagar fornecedores, é preciso pagar salários, é preciso pagar às equipas, é preciso pagar os custos. E, portanto, há um risco muito grande de se criarem projetos sociais para resolver uma necessidade social de uma população vulnerável e, depois, passado algum tempo eles voltarem atrás porque a organização não teve capacidade de manter o financiamento. E, de repente, podemos estar a criar um problema ainda maior para aquela família, porque lhes resolvemos uma situação e, de repente, puxamos-lhe o tapete.

Naturalmente, o coração está sempre presente, mas esta questão da sustentabilidade financeira é determinante para o futuro de qualquer organização e nós, de facto, temos tido um cuidado muito grande nesta gestão e neste crescimento. Um crescimento muito grande, mas tem sido um crescimento muito sustentado ao longo do tempo. 

Atualmente, quais são as principais fontes de receita da Fundação? 

Sempre parcerias empresariais, precisamos absolutamente de parcerias empresariais para financiar os nossos projetos. Depois, criámos a Casa do Jardim, montámos um projeto para trabalhar a nossa sustentabilidade financeira, que é um espaço que temos mesmo no nosso jardim, que alugamos às empresas e à sociedade civil para que possam desfrutar deste espaço, no centro de Lisboa. As empresas podem fazer reuniões, atividades de 'team building', almoços de negócios, o que seja, e estão a contribuir para uma causa social. Portanto, este é um espaço muito importante para nós porque é uma fonte de receita que nos ajuda a financiar os nossos projetos sociais.

Por outro lado, vamos fazendo várias parcerias com as empresas, vamos tentando inventar produtos,  serviços e parcerias para poder trabalhar na nossa sustentabilidade. E este último projeto, a Clínica do Gil, como já referi, já foi montado e já foi pensado nesta lógica de negócio social, precisamente para garantir a sua sustentabilidade. Não podemos continuar a criar projetos que estão totalmente dependentes de entidades externas, que, na verdade, é o que acontece à maior parte deste tipo de organizações e é o que nos acontece a nós.

É fácil olhar para as necessidades da sociedade e criar soluções, mas se as soluções não forem financiadas e não forem sustentáveis, nós não podemos fazê-las
 
Olhando também para isso, quais é que identifica como os principais desafios? 

Os principais desafios são, obviamente, o trabalho de sustentabilidade. Esse é o grande desafio e é a grande dor de cabeça porque, de facto, é fácil olhar para as necessidades da sociedade e criar soluções, mas se as soluções não forem financiadas e não forem sustentáveis, nós não podemos fazê-las. Portanto, o grande desafio é de facto manter a sustentabilidade do projeto e é uma coisa em que estamos a trabalhar. Inclusivamente, agora, para os próximos 25 anos, estamos a trabalhar aqui num projeto completamente focado na nossa sustentabilidade de futuro e para manter a nossa sustentabilidade nos próximos 25 anos.  
 
E que novo projeto é esse? Pode desvendar qualquer coisa?

Sustentabilidade financeira, mas em breve falaremos dele. 

Uma organização fica obsoleta se decidir colmatar uma necessidade do momento e ficar estagnada naquela necessidade, porque o mundo evolui muito rápido e as necessidades, necessariamente, também mudam

Então recuamos um pouco e pergunto-lhe o que é que acha que se aprendeu nestas mais de duas décadas? Ou seja, de que forma é que a Fundação evoluiu? 

Temos feito uma caminhada grande ao longo destes anos, muito de acordo com aquilo que são as necessidades a cada momento e acho que esse também é o espírito das organizações.  Uma organização fica obsoleta se decidir colmatar uma necessidade do momento e ficar estagnada naquela necessidade, porque o mundo evolui muito rápido, a sociedade evolui muito rápido e as necessidades, necessariamente, também mudam e nós temos de ir fazendo essa adaptação. E tem sido isso que temos feito. Temos os nossos dois projetos centrais, que é a Casa do Gil e os Cuidados Domiciliares Pediátricos, e a Casa do Gil acabou por evoluir agora para este novo projeto da Clínica do Gil por uma necessidade, por este olhar atento que fizemos à nossa população. Olhámos atentamente para estas crianças e identificámos uma necessidade específica que quisemos colmatar, o mesmo que fizemos com os cuidados domiciliários públicos. Começámos com cuidados continuados, em 2018 alargámos para os cuidados paliativos na pediatria e, o ano passado, criámos também um novo projeto de hospitalização domiciliária pediátrica, que também não havia na pediatria, portanto, um projeto piloto. E é um bocadinho isso que tentamos fazer sempre, que é inovar nas respostas e criar uma resposta diferente, uma resposta nova, que não exista e que, eventualmente, possa depois até ser duplicada por outros organismos.

Como somos uma estrutura muito pequenina e muito portada nos projetos, não temos uma estrutura grande e não temos ainda essa sustentabilidade, temos sempre de ter muito a cautela. O nosso objetivo não é expandir os projetos no país inteiro, é sim criar projetos que são inovadores e que possamos testar, adaptar, aferir o seu modelo e depois entregá-los, por assim dizer, à comunidade para que eles possam ser replicados até por outras entidades.  

Então, digamos que é esta também essa a visão da Fundação para o futuro. Que novos desafios é que motivam a Fundação, o que vê quando olha em frente? 

Para já, o grande objetivo é criar a nossa sustentabilidade financeira de forma estável. Estamos a trabalhar aqui no tal projeto que queremos lançar em breve e que tem precisamente a ver com essa estabilidade financeira. Esse é o próximo passo que queremos dar. Queremos estar tranquilos para, depois, poder crescer para outros projetos que temos na cabeça e que nos fazem sentido, sempre dentro desta área das crianças e da vulnerabilidade das crianças. Mas, antes de tudo isso, precisamos de dar este passo muito firme de garantir a nossa sustentabilidade e de não estar tão ao sabor aqui dos ciclos económicos. Na verdade é isso, porque as empresas também vão estando mais disponíveis para contribuir ou menos disponíveis para contribuir, dependendo do seu ciclo económico e nós somos o último ponto da cadeia, não é? A empresa produz para ter rentabilidade, os seus produtos, os seus serviços, depois precisa estar preocupada com os seus colaboradores e com os seus funcionários e depois, no final, o que sobra é que vão distribuir à comunidade. E, como nós estamos nessa última linha, precisamos mesmo de criar aqui uma estabilidade que não esteja tão dependente dessa volatilidade do mercado.  

Quem quiser contribuir para a Fundação do Gil o que é pode fazer? 

Pode ir ao nosso site, onde tem uma zona que diz ‘como apoiar’ e tem todas as formas de apoiar a Fundação do Gil.  

Temos tido histórias muito bonitas, temos tido alguns milagres, nós assim os designámos e isso, acima de tudo, deve-se ao esforço de uma equipa, que todos os dias trabalha com muita resiliência

Recorda-se se alguma história mais emocionante que acabe por mostrar o impacto da Fundação no terreno?  

É deselegante mencionar umas e não mencionar outras, mas de facto temos tido histórias muito bonitas, temos tido alguns milagres, nós assim os designámos e isso, acima de tudo, deve-se ao esforço de uma equipa, que todos os dias trabalha com muita resiliência e acredita muito naquilo que faz. Eu acho que o nosso mote é ‘cuidamos com amor’ e acho que isso faz mesmo a diferença e é o que nos permite ter assim uns milagres de vez em quando. Também temos histórias mais difíceis, em que ficamos todos muito frustrados por não conseguir ajudar melhor daquilo que queríamos, mas todas elas nos ensinam alguma coisa e todas elas nos trazem essa resiliência, que tem de ser aqui o nosso nome do meio.  

Entendo que não queira particularizar, mas, durante o tempo em que está à frente da Fundação, houve algum dia em que sentiu que era mais difícil estar nesse cargo? 

Não falarei tanto do ponto de vista dos casos sociais, porque esses são todos muito difíceis, mas falo no peso da responsabilidade e posso dizer que a pandemia foi um desafio muito grande, porque dependemos de fundos que vêm de empresas e  precisamos de fazer reuniões permanentes com as empresas a convencê-las a investir em nós em vez de investir noutros projetos sociais. Isso já é difícil de fazer ao vivo e a cores, fazê-lo por Zoom, numa altura em que o mundo  estava completamente incerto, foi muito, muito difícil. Eu por um lado fazia reuniões com a equipa, dizendo-lhes que ia ficar tudo bem e que ninguém ia para o lay-off e que não havia problema nenhum, mas depois à noite acordava com ataques de ansiedade a pensar como é que ia pagar salários no fim do mês. Foi um momento muito marcante e muito difícil.  

Estamos disponíveis para continuar a fazer isto por mais 25 anos e, portanto, o contributo de todos é fundamental

Que mensagem gostaria de deixar? 

Em primeiro lugar, quero agradecer, quero agradecer a todos os que contribuíram para que este caminho fosse possível e os que caminharam ao nosso lado. E são muitas empresas, são muitos indivíduos, a sociedade, muitos voluntários, muitos parceiros e quero agradecer. Estamos a preparar agora uma campanha de comunicação e esse é o mote, nós queremos agradecer de facto este caminho dos 25 anos. E, depois, dizer que estamos disponíveis para continuar a fazer isto por mais 25 anos e, portanto, o contributo de todos é fundamental, é muito importante.

Às vezes, as pessoas pensam ‘ah, mas eu se vou ajudar, só vou dar isto e isto não faz a diferença’ - faz. O Gil é uma gota de água, não é? E uma gota de água sozinha também não faz a diferença, mas muitas gotas de água formam um oceano. É um bocadinho essa a nossa história. E, de facto, é passar um bocadinho essa mensagem - todos juntos conseguimos mudar o mundo, todos juntos conseguimos fazer a diferença na vida dos outros. E nós acreditamos genuinamente nisso e precisamos de todos.  

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