"Nacionalização da banca foi um processo, não houve regra e esquadro"

A nacionalização da banca há 50 anos foi um marco histórico do pós-25 de Abril, um processo ligado ao poder e mobilização dos trabalhadores bancários num tempo de convulsão política e social e em que foi decisivo o 11 de Março.

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Lusa
12/03/2025 08:42 ‧ há 5 horas por Lusa

Economia

Nacionalizações

A nacionalização em 14 de março de 1975 da maioria dos bancos comerciais - pelo recém-criado Conselho de Revolução - foi considerada pelo marechal Costa Gomes, então Presidente da República, como "a lei mais revolucionária que jamais foi promulgada" em Portugal.

 

"A nacionalização da banca foi um processo, não houve regra e esquadro. Foi mais rápido e consolidado a nível sindical e mais lento, mas mais efetivo no MFA [Movimento das Forças Armadas]", diz em entrevista à Lusa Anselmo Dias, então presidente do poderoso Sindicato dos Bancários de Lisboa.

O papel determinante dos bancários e dos seus sindicatos no condicionamento da evolução política e económica é defendido pelo historiador Ricardo Noronha, na tese de doutoramento 'A nacionalização da banca no contexto do processo revolucionário português'.

Segundo Noronha, a nacionalização "não resultou do voluntarismo político dos organismos militares recém-criados, mas muito mais da força e determinação demonstradas pelos trabalhadores bancários e pelo seu sindicato na resposta ao golpe" de 11 de Março de 1975 (tentativa de golpe de fações de direita ligadas a António de Spínola).

Mal se dá o 25 de Abril, os bancários tornam-se um contrapoder nos bancos, vigiando administrações e movimentos de capitais, com a conivência do poder militar. Apenas o Sindicato dos Bancários de Lisboa (designado depois Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas) tinha mais de 25 mil associados e 1.100 delegados sindicais.

Desde 1968, os sindicatos tinham direções ligadas à oposição (comunistas, católicos progressistas e de outros círculos da oposição democrática) e impunham-se como resistência ao regime (organizaram grandes protestos contra a prisão de Daniel Cabrita, em 1971) e ao poder dos grupos económicos que controlavam a banca (destacavam-se CUF, Champalimaud e Espírito Santo).

Sobe de tom a acusação de que os banqueiros financiam a direita e extrema-direita e fazem "boicote económico" - desviam capitais para o estrangeiro e dificultam empréstimos às pequenas empresas (sem dinheiro para laborar e pagar salários).

Setembro seria um mês importante. São nacionalizados os bancos emissores de moeda (Banco de Portugal, Banco de Angola e Banco Nacional Ultramarino, cumprindo o programa do MFA) e há uma tentativa de golpe no dia 28.

Também aqui intervém o Sindicato dos Bancários de Lisboa. Em 26 de setembro, mobiliza os seus associados para "impedir a manifestação da dita 'maioria silenciosa'", de apoio a Spínola.

Com a manifestação desconvocada (já havia barricadas nos acessos a Lisboa) e o setor spinolista enfraquecido (Spínola demite-se de Presidente da República), há novo impulso no processo revolucionário, que vira à esquerda, e cresce o discurso pelo reforço da intervenção do Estado na economia (mesmo em meios considerados moderados).

No outono, é intervencionado o BIP - Banco Intercontinental Português. Silva Lopes, que era ministro das Finanças na altura, diria ao Público em 2009 que considerava Jorge de Brito (presidente do BIP) dos 'indivíduos mais fraudulentos do país' e não compreendia como tinha conseguido reaver património anos depois.

O ano de 1975 arranca com uma assembleia geral histórica do Sindicato dos Bancários de Lisboa. Em 03 de janeiro, no Pavilhão da Tapadinha, em Alcântara, 4.500 bancários aprovam a moção pela nacionalização da banca.

"Na minha vida, de recordações, lembro-me de um sabor, o da sopa de tomate feita pela minha avó no Alentejo, e de um som, o som desta assembleia. Deram-me a honra da apresentação do texto e foi submetido a votação. Quando se dá o resultado da votação, há um grito, uma coisa impressionante, é esse som que ainda hoje tenho, o grito de alegria daquela malta toda em relação à nacionalização da banca", conta Anselmo Dias à Lusa.

O ex-dirigente sindical recorda que, no dia seguinte, houve discussão no MFA e só uma minoria era favorável à nacionalização e, em 07 de fevereiro, é aprovado pelo Governo o 'Plano Melo Antunes' que era tido como moderado no plano económico.

Para Anselmo Dias, tal prova que até à véspera do 11 de março não é preponderante a ideia da nacionalização da banca nas estruturas de poder e que o momento decisivo foi a tentativa de golpe da direita.

Em 11 de março, mal tem conhecimento das movimentações militares, o Sindicato dos Bancários de Lisboa fala das movimentações da "escumalha fascista" e exorta ao "encerrar dos bancos".

Cada comissão de delegados sindicais dirige-se às sedes, expulsa administradores e diretores e aí permanece vários dias para que ninguém entre ou saia.

Na noite de 11 para 12 de março decorre a designada 'assembleia selvagem' do MFA em que uma das decisões é a nacionalização do setor financeiro.

Também ocorrem detenções de empresários -- casos de Manuel Ricardo Espírito Santo, António Ricciardi ou Jorge de Mello -- e o ministro das Finanças, Silva Lopes, tenta uma solução de 'meio termo' na qual administradores privados dos bancos seriam substituídos por comissões administrativas, mas sem nacionalizações.

Contudo, o processo já tinha galgado. No dia 13, no Palácio de Belém, numa reunião longa (com Presidente da República, Costa Gomes, primeiro-ministro, Vasco Gonçalves, e também Melo Antunes, Vasco Lourenço, Pinheiro de Azevedo, entre muitos outros), é tomada a medida de nacionalizar a banca.

A memória dos protagonistas daquela reunião tem sido por vezes contraditória, segundo relatos na imprensa, mas concordam que se alguém estava contra não contestou com afinco.

Em entrevista no livro 'Memórias de Economistas', Silva Lopes admitiu que apoiou a nacionalização. "A ideia da nacionalização da banca não partiu de mim, nem era meu projeto, mas de facto tenho de reconhecer que acabei por apoiá-la", disse.

Vasco Lourenço, em declarações ao Independente em 1994, relatou que só passou a apoiar a nacionalização quando lhe demonstraram a necessidade. "Se a proposta tivesse partido apenas de militares presentes, eu com certeza não apoiaria. Foi um economista que me convenceu, agora qual não sei", afirmou.

À Lusa, o oficial da Marinha Henrique Mendonça, então adjunto do primeiro-ministro, considera que nessa decisão foi fundamental uma investigação que o MFA ordenou à sucursal do Banco Pinto & Sotto Mayor em França por suspeitar que António Champalimaud estava a drenar para aí fundos e a queria transformar num banco autónomo para reter remessas de emigrantes.

Henrique Mendonça revelou à Lusa que fez parte da equipa que foi a Paris propositadamente durante alguns dias para essa missão.

"Trouxe-se documentos e entregou-se ao general Vasco Gonçalves. Nesta altura o primeiro-ministro considerou que, embora a revolução portuguesa estivesse a dar passos gigantescos e embora achasse que não era o momento próprio, só se podia resolver este assunto da drenagem do dinheiro com a nacionalização da banca", recorda.

Anselmo Dias conta que, no dia 13, se manteve horas na sede do sindicato, à espera da informação que desse conta da nacionalização. O telefonema chegou perto das 2:00 da manhã de dia 14.

Estava tomada a mais revolucionária das medidas económicas.

Entre os bancos nacionalizados estavam Banco Pinto & Sotto Mayor (de Champalimaud), Banco Totta e Açores (da família Mello), Banco Espírito Santo (da família Espírito Santo), Banco Português do Atlântico, Banco Fonsecas & Burnay e Banco Borges & Irmão.

O decreto justificava as nacionalizações face à "necessidade de concretizar uma política económica antimonopolista que sirva as classes trabalhadoras" e perante uma banca "ao serviço dos grandes grupos monopolistas", em vez de canalizar as poupanças para "satisfação das reais necessidades da população portuguesa e apoio às pequenas e médias empresas".

Escapam às nacionalizações bancos de capital estrangeiro (para evitar sanções a Portugal), caixas económicas e de crédito agrícola mútuo. Refere o diploma que será o primeiro-ministro a nomear as comissões administrativas de cada banco, "ouvidos o ministro das Finanças e os sindicatos dos bancários".

A nacionalização da banca foi recebida com manifestações de apoio pelo país. PCP, PS e PPD saúdam-na.

No seu livro 'Da resistência Antifacista à nacionalização da banca', Anselmo Dias conta que, durante a ocupação dos bancos que durou de 11 a 15 de março, os bancários "manifestaram enorme sentido cívico pela guarda dos bens" e que tudo "foi rigorosamente entregue ao povo português". A exceção, relata, foram "meia dúzia de charutos cubanos encontrados na secretária de um administrador" do Banco Espírito Santo que os sindicalistas fumaram nas longas noites de piquete.

Leia Também: Pagamentos e transferências bancárias ganham novas regras. Eis o que muda

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