Aos 44 anos, Rita Piçarra deixou o cargo de Chief Financial Officer (CFO) na Microsoft Portugal e decidiu dedicar o seu tempo à família, aos amigos, às palestras e ao surf, entre muitas outras atividades.
Como? Graças à independência financeira que alcançou ao fim de vários anos, permitindo-lhe 'reformar-se' numa idade considerada precoce.
Ao Notícias ao Minuto, contou como chegou a este ponto e partilhou várias sugestões e ideias sobre o seu processo, deixando pelo caminho uma palavra de "esperança" para o panorama financeiro em Portugal, onde, admitiu, há ainda mentalidades a mudar, sobretudo ao nível da literacia financeira.
Depois de ter anunciado a minha reforma, houve este tsunami de atenção mediática, porque é o sonho de muitas pessoas, não só em Portugal mas também no resto do mundo
Como tem lidado com a atenção mediática que se gerou em torno do seu caso em Portugal?
Enquanto CFO da Microsoft Portugal, já tinha saído em algumas revistas. Saí na Forbes, numa reportagem grande, essa foi muito importante... Não é todos os dias que se sai na Forbes. Depois de ter anunciado a minha reforma, houve este tsunami de atenção mediática, porque é o sonho de muitas pessoas, não só em Portugal mas também no resto do mundo, poderem-se reformar aos 44 anos. Foi mesmo um tsunami, uma onda um bocadinho maior do que aquelas a que estou habituada a surfar.
Não estava de maneira nenhuma à espera que houvesse este tipo de atenção e de mediatismo, foi difícil de lidar, no sentido em que foram talvez centenas de milhares de mensagens, pedidos de mensagem, comentários, a esmagadora maioria positivos, mas, claro, alguns também negativos.
Tem sido muito gratificante perceber que a minha história de vida e as decisões que tomei podem - e estão a - inspirar pessoas a tomarem as rédeas da sua vida, das duas carreiras e das suas finanças.
Há aquelas que perguntam se estou doente, se vou morrer e por isso é que estou reformada, e as outras são aquelas que sugerem que roubei ou fiz alguma coisa menos lícita
Falou dos comentários negativos... Visitando várias publicações, surgem algumas sobre se a Rita está alheada do mundo, ou teve sucesso só porque esteve nos Estados Unidos e é diferente... Qual é a sua leitura sobre isto? Realmente há uma diferença? Poderão também alguns comentários negativos surgir porque é uma mulher a ter sucesso?
As pessoas não se dão ao trabalho, sequer, de ouvir a história. Leem as 'gordas' [parangonas], veem 'reformou-se' e pronto, a partir daí, pensam: "Ela recebe uma pensão da Segurança Social aos 44 anos"... e depois, há duas vertentes: há aquelas que perguntam se estou doente, se vou morrer e por isso é que estou reformada, e as outras são aquelas que sugerem que roubei ou fiz alguma coisa menos lícita.
As pessoas que fazem estes comentários menos positivos não se dão ao trabalho de ir ouvir a história, perceber que venho de famílias humildes, da Serra das Minas, que tive que trabalhar e que subi a pulso na carreira, que o meu primeiro ordenado não foi nem de 1.000 euros.
E que tive que ir subindo na minha carreira. Fui ganhando competências e cargos cada vez com mais importância. Também emigrei, que não é uma coisa fácil. As pessoas pensam: "Ah, emigrou, foi ganhar imenso dinheiro". Pois, sim, é verdade, fui ganhar mais dinheiro, pagar menos impostos, mas a que custo? Estar emigrada, longe da família, dos amigos, de tudo aquilo que nos é familiar é difícil, associada à pressão de termos de ser bem sucedidos para poder haver esta vantagem de estarmos fora.
Os comentários negativos - felizmente não são a maioria - vêm muitos de pessoas que não ouviram a história na sua totalidade e leram apenas as 'gordas'.
Às vezes, peço às pessoas para levantarem o braço se sabem quanto é que gastaram em alimentação o ano passado, e só 10% a 15% é que levantam a mão
Pode ser o reflexo de alguma ignorância sobre as ferramentas financeiras, alguma iliteracia financeira?
Os comentários negativos não têm a ver com isso. Que existe uma falta de literacia financeira em Portugal, existe, sem dúvida, é uma coisa desmesurada.
Consigo ver o reflexo direto disso quando faço palestras. Às vezes, peço às pessoas para levantarem o braço se sabem quanto é que gastaram em alimentação o ano passado, e só 10% a 15% é que levantam a mão. É um espelho de uma sociedade em que trabalhamos 40 ou mais horas durante a semana para ganhar um salário e, depois, não dedicamos uma hora que seja a perceber para onde é que o dinheiro está a ir. O dinheiro dá tanto trabalho a ganhar e, depois, não temos controlo sobre as nossas finanças, não sabemos para onde está a ir.
Pior que tudo, não o investimos. Não é só não termos controlo sobre os gastos, também quando chega o momento de poupar, as pessoas poupam muito em depósitos a prazo, que já dá juros abaixo da inflação, o que quer dizer que estão constantemente a perder dinheiro.
O facto de estar em Portugal não quer dizer que tenham de ganhar o salário mínimo nacional. Todos nós temos de ter ambição, que é uma palavra 'tabu' em Portugal. Mas as pessoas têm de perceber que ter ambição para alcançar os nossos objetivos é bom
É possível, em Portugal, trabalhando cá, com um salário português e com o custo de vida cá, fazer uma gestão do dinheiro que permita investir, em primeiro lugar, e depois com valores que possam mesmo levar à independência financeira?
Eu tenho vários contactos de pessoas que fui conhecendo, depois de a minha história se ter tornado viral, que estão nesse caminho, baseados em Portugal, com salários portugueses, com impostos portugueses.
Portanto, diria que sim. Não foi o que fiz! É, sem dúvida, um percurso mais difícil, com pedras mais difíceis de pisar. Agora, nada é feito sem ambição, sem muito planeamento...
Há três fatores muito importantes que as pessoas têm de ter em consideração. Primeiro, têm de ter ambição. O facto de estar em Portugal não quer dizer que tenham de ganhar o salário mínimo nacional. Todos nós temos de ter ambição, que é uma palavra 'tabu' em Portugal. Mas as pessoas têm de perceber que ter ambição para alcançar os nossos objetivos é bom.
É preciso ter ambição, para ganhar mais salário, e para sairmos da chamada cepa torta
Há alguma confusão entre ambição e ganância?
É mesmo isso. É de extrema importância que as pessoas tenham vontade de crescer mais para atingir os seus objetivos e ganhar muito mais dinheiro. O que pode acontecer no seu trabalho corrente ou num 'side hustle', ou seja, em biscates, para se ganhar um pouco mais de dinheiro.
Os meus pais fizeram isso e eu, enquanto trabalhei na Microsoft, também tive o meu biscate. Tive de tomar conta dos imóveis que fui comprando, para gerarem rendimento, ao mesmo tempo.
É preciso ter ambição, para ganhar mais salário, e para sairmos da chamada cepa torta.
A segunda parte tem a ver com o equilíbrio entre a vida pessoal e a vida profissional. Não podemos descuidar este equilíbrio, dentro do possível, porque se não estivermos bem, não vamos conseguir ser bons profissionais.
O terceiro, por sua vez, tem a ver com o planeamento financeiro. Poupar não é suficiente, a taxa de inflação está acima do que os bancos estão a pagar, portanto, é necessário arranjar outras soluções que façam o dinheiro trabalhar para nós e ser rentabilizado, de forma a que não esteja a perder valor.
Ainda faz sentido aquela velha máxima das finanças de não colocar os ovos todos no mesmo cesto?
Investimentos diversificados é uma regra básica do investimento. Eu chamo-lhe o triângulo dourado, com os três vértices importantes do investimento.
O primeiro tem a ver com a liquidez. É importante as pessoas terem investimentos com muita liquidez, chama-se a isso o fundo de emergência, ou seja, seis vezes os gastos mensais.
A liquidez tem a ver com o quão rápido o dinheiro está disponível. É importante termos, em parte dos nossos investimentos, um nível de liquidez muito alto, para que, num caso de emergência, consigamos ter o dinheiro e fazer face à emergência que chegar.
O segundo vértice tem a ver com a rentabilidade, ou seja, quanto dinheiro conseguimos fazer com o nosso investimento. Pode ser maior ou menor, e está associada ao terceiro vértice, que tem a ver com o risco.
O risco não é de ter muita ou pouca rentabilidade, estamos é a falar do risco de perder o dinheiro que lá se investiu na sua totalidade. O que acontece é que, quanto maior o risco, maior o retorno, quanto menor o risco, menor o retorno.
As pessoas têm de perceber qual é o ponto ideal onde vão estar dentro deste triângulo. Posso ser mais adversa ao risco, e, portanto, vou fazer investimentos com menos risco e, normalmente, menos rentabilidade, ou, à medida que vou estando mais confortável com investimentos e percebendo melhor do que são feitos, vou estando um bocadinho mais para o lado do risco e, seguramente, com um retorno um bocadinho maior.
Convém termos investimentos diversificados, uns com mais riscos, outros com mais liquidez, outros com mais rentabilidade, para termos um perfil mais diversificado e estarmos, de alguma maneira, com um portfólio mais robusto a crises, a riscos, para não corrermos tanto perigo.
O termo 'reformar-se' é o mais correto para referir-se à sua situação? Na realidade, o que aconteceu é que a Rita atingiu a independência financeira, não está a receber subsídios...
É viver dos rendimentos! [risos]
O que fiz foi atingir a minha independência financeira e deixar de trabalhar, ou seja, comprar a minha liberdade
Exato, de certa forma. Por isso, 'reformar-se' é um termo que faz sentido neste caso?
O conceito de reforma antecipada vem muito do movimento que em inglês se chama FIRE, ou seja, 'Financial Independence, Retire Early' (Independência Financeira, Reforma Antecipada, numa tradução livre para português). A reforma, nos Estados Unidos, se fizermos a tradução de 'retirement', refere-se a alguém que deixou de trabalhar. Agora, se fizermos a busca sobre a definição do que é a reforma em Portugal, vai aparecer alguém que vive do subsídio do Governo.
É um bocadinho ingrato quando o mesmo termo quer dizer uma coisa num sítio e outra noutro lugar. O que fiz foi atingir a minha independência financeira e deixar de trabalhar, ou seja, comprar a minha liberdade.
Quando saímos da faculdade, vendemos o nosso tempo a uma empresa em troco de um salário e o que fiz foi comprar a minha liberdade de volta. Ou seja, dizer à empresa: já não quero o salário, quero é o meu tempo de volta, porque o tempo é o bem mais luxuoso que temos.
Portanto, viver dos rendimentos, estar reformada, ter liberdade...
São termos, na realidade...
É difícil escolher um, mas tanto me faz, desde que não me chamem nomes [risos].
Antes de dar o 'grito do Ipiranga' e sair, tive que trabalhar com uma psiquiatra para perceber o que é que iria fazer depois
Não tem saudades dos cargos executivos? Eram de um certo gabarito, com uma vida social muito ativa, com um certo 'status'...
Não, nenhumas, de todo [risos]. Antes de dar o 'grito do Ipiranga' e sair, tive que trabalhar com uma psiquiatra para perceber o que é que iria fazer depois. Falei com alguns amigos, que também já se tinham reformado, e muitos deles tinham entrado em depressão, então tivemos que trabalhar em conjunto para percebermos como é que não ia entrar em depressão, como é que esta falta de 'status' ou de pertencer a algo maior que nós não me iria afetar e como poderia jogar na antecipação para que não me acontecesse.
Tive que trabalhar em encontrar um novo propósito, um novo objetivo de vida, algo que me fizesse sentir útil para a sociedade. Havia duas coisas que queria fazer: Queria ser voluntária, fazer algo de cariz solidário, e, ao mesmo tempo, queria falar. Gosto muito de falar, especialmente em público, não sei porquê, não fico nada nervosa [risos]. Fico mesmo contente, dá-me mesmo uma energia positiva.
Então pensei que ia ser voluntária na Liga Portuguesa Contra o Cancro e que ia ser professora numa universidade da terceira idade, para alguém que me quisesse ouvir.
Depois de o podcast ter ficado viral, isto deu uma volta de 180º, ou melhor, sei lá quantos graus. Deu tantas voltas que já nem sei quantos graus foram. Percebi que o meu novo propósito era ajudar as pessoas, estar nas conferências e nas palestras.
E não senti falta. Ou seja, deixei de pertencer à Microsoft. Mas passei a pertencer a algo muito maior do que eu. Não sou uma figura pública, mas passei a estar na boca do público como a pessoa que se reformou jovem e como alguém em quem se podem inspirar e seguir. Por isso, não cheguei a sentir falta.
Lógico que tenho saudades das pessoas, mas quando tenho saudades marco um almoço com elas, vou ter com elas.
É a tal liberdade de que falava...
Sim, exatamente.
Onde é que a paixão pelo surf entra nisto tudo? Qual é a correlação?
Comecei a surfar quando tinha 18 anos. Tinha um namorado que surfava e, pronto, quando não podes vencê-los, junta-te a eles. Então lá comecei a surfar, há muitos anos, e lá está, não sou nada boa, mas gosto, divirto-me, e acho que se mede o quão bom se é num desporto pelo nível de satisfação e de energia que se consegue ao praticá-lo, e isso eu tiro muita alegria.
Gosto muito, gosto de estar em conexão com o mar, de estar simplesmente sentada, lá fora, alheada de tudo o resto. Não há telemóveis, não há: 'Mãe, tenho fome', não há o telefone a tocar, nada, só eu e o oceano e isso dá-me muito prazer.
Começou assim e ficou para sempre. O surf é talvez o meu único vício. Há estudos que dizem que ao praticar desporto se libertam várias hormonas que geram alegria e eu acho que é isso que sinto quando surfo ou quando ando de skate. Sou uma pessoa mais feliz e mais alegre.
Por isso aceitei participar no PRIO Softboard Heroes, porque juntava exatamente as duas coisas que me davam alegria: Ajudar pessoas e o surf.
Se queres ser um excelente profissional, tens de estar bem na tua vida pessoal
Como é que na agenda de uma alta executiva da Microsoft se conseguia arranjar tempo para ir surfar ou andar de skate?
Se queres ser um excelente profissional, tens de estar bem na tua vida pessoal. Nunca fui diagnosticada, mas acho que tenho hiperatividade. Na minha idade, ninguém era diagnosticado, dizia-se só que 'tínhamos o bicho carpinteiro no corpo' e pronto, esse era o diagnóstico. Então, sempre percebi que, ao fazer desporto e gastar essa energia extra, consigo focar-me melhor no trabalho e nas outras coisas que tenho de fazer.
Praticar desporto para mim sempre foi um 'must', sempre teve de estar associado ao meu dia a dia. Eu defini duas prioridades pessoais: Uma era fazer desporto, e normalmente ia à hora de almoço, e a outra era ir buscar a minha filha à escola.
Para mim, praticar desporto é quase tão importante como comer.
Numa fase da sua carreira, viveu em Madrid. Aí não há oceano... Como se colmatou essa falta de surf?
Foi, talvez, o sítio onde menos gostei de morar. Fui tão triste e tão infeliz em Madrid.
Quando chegas [a Portugal] e começas a ouvir frases como... 'Eh pá, isso vai dar muito trabalho', ou 'Eu sempre fiz assim, porque é que agora hei de fazer diferente?'... é muito duro
É que nem o rio é muito conhecido pelos desportos aquáticos...
Nada! Aquilo tem um centro comercial com uma pista de neve e pensei 'Pronto, é água, sólida, já dá qualquer coisa'. Acabamos por viajar muito mais, vínhamos muitos fins de semana a Portugal, viajávamos mais para fora, até porque dali saem muitos mais voos diretos do que daqui.
As pessoas perguntam-me sempre qual foi o lugar onde gostei mais de viver, e nunca ninguém me perguntou o sítio onde gostei menos de viver, e acho que foi mesmo Madrid. Pela falta de água e pelo frio e pelo calor extremos. É muito duro.
Outra coisa de que não gostei muito foi da vivência das pessoas, que têm um ar muito mais altivo, de julgamento.
Vínhamos de Miami e a minha filha vestia os vestidos das princesas, com aqueles acessórios de várias cores, pintava as unhas de não sei quantas cores diferentes, e lá as crianças estão todas vestidas de igual.
As pessoas quando pensam na CFO da Microsoft Portugal, pensam sempre num perfil mais cinzento, mais quadrado e tal... e eu sempre fui muito mais 'down to earth', com os pés assentes na terra, muito mais simples, por isso não me encaixei muito em Madrid.
Quais foram as principais diferenças que sentiu entre a cultura de trabalho nos Estados Unidos e em Portugal - e na Europa, por sinal?
Quando voltei para Portugal, pensava que estava a voltar para o meu país, pronto, nasci cá, na Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, por isso pensei que não precisava de me adaptar. Quando chegas e começas a ouvir frases como... 'Eh pá, isso vai dar muito trabalho', ou 'Eu sempre fiz assim, porque é que agora hei de fazer diferente?'... é muito duro.
É muito duro perceberes que a mentalidade ainda está muito relacionada a estas duas frases, muito 'velho do Restelo'. É essa mentalidade de 'Pronto, como está assim funciona e, portanto não vou fazer de maneira diferente porque vai dar muito trabalho', fechada, de 'Eu sei tudo e não estou disposto a aprender mais nada porque o que sei é essencial e está feito'.
Depois comparas com a mentalidade nos Estados Unidos, que têm a apetência de dizer: 'Vamos lá, ganhas a medalha de participação'... É uma cultura completamente diferente, que premeia tentares, que até beneficia o erro, porque ok, tentamos, falhamos, vamos então aprender com o erro, evoluir.
Aqui em Portugal, quando falhamos, a primeira coisa que fazemos é apontar o dedo a alguém e perceber quem é que errou. Não é aquela ideia de 'Ok, erramos, somos uma equipa, erramos, e, portanto, agora vamos partir para a solução e ver como vamos fazer com que não aconteça novamente'.
Foi muito difícil voltar e perceber que tinha mudado enquanto pessoa e já gostava mais da outra forma de trabalhar, que não era a nossa.
Dou até um exemplo: Num dos cantos do sítio onde vivo, há um poste com fios. Há dias, com um grande vendaval, um dos cabos caiu. Havia um senhor, num escadote, no cimo do poste, e perguntei-lhe se não se importava de enrolar o cabo para que não estivesse sempre a cair. Podia dar chatice.
Ele olhou para mim e disse: 'Mas este cabo não é meu'. Fiquei a olhar para ele... e ele continuou: 'Não. Se os outros não se preocupam, porque é que eu me vou preocupar?'.
Quer-se dizer, eu preocupei-me, pedi-lhe para enrolar o cabo outra vez, ou então que me deixasse subir ao escadote para eu o enrolar. Este tipo de atitude é triste, a mim deixa-me preocupada com o futuro de Portugal.
Não é à toa que estão milhares de estrangeiros em Portugal, que é um país incrível. Quanto mais viajo, mais gosto do meu país
Então porquê regressar?
Eu queria ser a CFO de Portugal, do meu país, é um orgulho diferente. Depois, quando se entra na idade da reforma, onde é que queremos ser velhinhos?
Portugal é um país mais barato, comparado com os outros, e a qualidade de vida que se tem aqui - tendo sempre em conta os salários de cá, claro - é muito boa. Temos muita segurança, um país bonito, com comida boa, pessoas simpáticas...
Não é à toa que estão milhares de estrangeiros em Portugal, que é um país incrível. Quanto mais viajo, mais gosto do meu país.
Os 50 anos de idade eram um estilo de 'teto' para atingir a independência financeira, mas em que momento é que se fizeram as contas e pensou 'Ok, é agora', aos 44 anos?
Foram duas coisas, na realidade. Primeiro, eu consegui a minha independência financeira aos 42 anos e não saí logo da Microsoft. O FIRE diz que tens de ter 25 vezes os teus gastos anuais, eu não fiz isso. O que fiz foi que, quando o valor dos meus investimentos me deu uma renda que achei que era razoável para viver todos os meses, pensei: 'Ok, já não preciso do salário da Microsoft, posso-me retirar'.
Isso aconteceu quando tinha 42 anos. Estava a fazer o meu trabalho de sonho, aquele que, desde 2005, quando entrei na Microsoft, tinha andado a planear e a construir durante a minha carreira. E senti que ainda não tinha acabado este projeto. Então pensei: 'Estou a gostar imenso do que estou a fazer, ainda estou a trabalhar em temas de diversidade, inclusão, da cultura da Microsoft, sustentabilidade, e ainda não acabei este meu projeto, então não quero já ir embora'.
Passados dois anos, percebi que tudo o que tinha lá ido fazer, já tinha feito, tudo o que queria aprender, já tinha aprendido, portanto já me podia retirar. Então cheguei ao meu marido e disse que tínhamos duas hipóteses. No meu plano de desenvolvimento de carreira dizia que íamos para a Ásia, mas eu já tinha dinheiro para não fazermos mais nada. Então perguntei: 'Tu queres ir para a Ásia?', e ele, 'Não'.
Depois perguntei à minha filha, Teresa: 'A mãe está a pensar se ia para a Austrália, ou Nova Zelândia, Singapura... o que achas?'. E ela disse: 'Não, eu gosto da minha escola, não quero ir'.
Depois pensei então se queria mesmo ir, ou não, que competências novas é que ia ganhar. Ia ser CFO, já tinha sido CFO, ia ser mais do mesmo. Então pronto, pensei que se calhar não ia ser feliz.
Depois, ainda pensei: 'Se o CEO da Microsoft, Satya Nadella, viesse almoçar comigo e me dissesse para escolher qualquer função, não conseguia dizer uma'.
Então pensei que, se não havia nada que me alegrasse, se a família não queria ir, mais valia ir embora. Foi aí que comecei a trabalhar com a psiquiatra para encontrar o novo propósito, porque, se nada daquilo me dava felicidade ou energia todos os dias para acordar, então o que seria?
Esse trabalho em conjunto com a psiquiatra é uma influência americana? Em Portugal, não é tão comum ir frequentemente ao psiquiatra, ou ao psicólogo.
Ah, sim, cá, se fores ao psiquiatra, é porque és maluco.
Enquanto estivermos metidos nas caixinhas da sociedade e pensarmos só pelas normas da sociedade, não vamos chegar lá
Pois, há essa cultura... Será que isso também afeta a nossa cultura de trabalho?
Desde que começamos a conversar, ainda só falamos de 'tabus'. Ambição? Ganância? 'Tabu'. Balanço entre vida e trabalho? Tem muito a ver com psiquiatras e psicoanalistas, com a vida pessoal, ou mesmo a nível da vida profissional, lá está, 'tabu'. Às vezes nem podes dizer se és casada, se tens filhos. Depois, o dinheiro também é 'tabu', ninguém fala disso.
Enquanto estivermos metidos nas caixinhas da sociedade e pensarmos só pelas normas da sociedade, não vamos chegar lá.
Também não falamos do viver das aparências em Portugal, as pessoas não têm dinheiro, mas preferem endividar-se até à nona casa...
É o típico caso de quem compra um carro de alta gama e depois não tem dinheiro para encher o depósito.
Às vezes, para comer em casa... Ou então aquelas celebridades que vão às festas para comer o croquete e, depois, não têm o que comer em casa. Vive-se muito das aparências em Portugal, e é muito difícil quando vives numa sociedade que está minada de maus exemplos e más coisas a seguir. Temos de pensar diferente.
E tem esperança de mudar isso? Ou já está entranhado...
Há sempre esperança, é a última a morrer, e as pessoas estão a aperceber-se cada vez mais disto. Principalmente depois da pandemia da Covid-19. O tempo e a saúde são os dois bens mais valiosos que temos, então ter liberdade é o bem mais luxuoso que alguém pode conquistar. A mentalidade está a mudar.
Hoje em dia, como é que é um dia na sua vida, não havendo a rotina corporativa?
Esta vai ser daquelas respostas em que depois as pessoas fazem bonecos e me chamam nomes.
Normalmente, acordo sem despertador, entre as 6h30 e as 7h00. Depois, despacho a minha filha para ir para a escola, despacho-me a mim mesma e vou treinar, das 9h00 às 10h00, na praia, com personal trainer. Depois, tenho aula de skate ou de padel, dependendo do dia. Noutros dias, normalmente vejo onde é que há ondas para surfar.
Almoço com o meu marido, sempre. Não sei é cozinhar, tenho esse defeito.
Então, agora se calhar tem mais tempo para aprender?
Já tentei, já fiz cursos de culinária, tenho a Bimby. Há que dar a mão à palmatória. Pronto, então almoçamos e, depois, à tarde, vejo o meu e-mail, para ver se tenho algum convite para alguma palestra, respondo às mensagens nas redes sociais. E, depois, pronto, faço palestras, podcasts, assinaturas de livros, o que for.
A minha filha chega da escola, banho, trabalhos de casa, jantar, e, às 21h30, cama.
Falou de dar aulas. É uma ideia que ainda tem em mente?
Vou dar umas aulas na Nova SBE, em Carcavelos, vou ver como é que corre, até porque é algo que estava no meu plano e acho que vai ser engraçado. Depois, logo verei. Se gostar, continuarei.
E é um belo sítio para dar aulas, para quem gosta de surf e do mar.
E é mesmo aqui ao pé de mim!
Para concluir, faça-me só um breve balanço da atualidade, do seu livro 'A Vida Não Pode Esperar', da experiência recente no surf...
O livro vai na quarta edição, está a correr super bem... e o PRIO Softboard Heroes foi muito engraçado, embora tenha levado porrada [risos].
Mas saiu de lá bem-disposta.
Muito! Foi muito engraçado. Costuma dizer-se que mais vale um mau dia de praia que um bom dia de trabalho [risos]. Ainda por cima para ajudar instituições e causas. Fantástico.
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