A troca de acusações a propósito deste assunto voltou a colocar no espaço público o debate sobre o difícil trabalho de memória histórica em Espanha relativamente à ditadura de Franco e à designada "transição espanhola" para a democracia.
O crescimento da extrema-direita e da presença do partido Vox nas instituições, incluindo parlamentos e governos regionais, acentuou esta divisão e este problema nos últimos anos, tendo mesmo a Organização das Nações Unidas (ONU) apelado a Espanha, em abril passado, num relatório, para adotar medidas para que seja garantida "a preservação da memória coletiva" das violações de Direitos Humanos como as cometidas durante a ditadura de Francisco Franco (1939-1978) e a guerra civil de 1936-39.
Um grupo de relatores da ONU pronunciou-se por causa de leis propostas por governos regionais formados por coligações do Partido Popular (PP, direita) e do Vox (extrema-direita), entretanto desfeitas.
Francisco Franco morreu em 20 de novembro de 1975 e arranca em 08 de janeiro próximo um calendário com mais de cem atividades "nas ruas, escolas, universidades e museus" sob o lema "Espanha em liberdade", que ao longo de 2025 celebrará a democracia e tentará, segundo o governo, a ter um objetivo pedagógico, explicando o que significou viver em ditadura.
Nestes 50 anos, Espanha passou a ser "uma das democracias mais plenas do mundo", mas "essa vitória nunca é definitiva" e "existe um perigo real de involução" atualmente, disse o primeiro-ministro, o socialista Pedro Sánchez, em 10 de dezembro passado, quando anunciou o calendário de atividades a propósito dos 50 anos da morte de Franco.
"Hoje, discursos de reivindicação da ditadura profanam até o templo da democracia, que é o Congresso dos Deputados", realçou o líder do Governo, que se referia ao parlamento e a deputados do Vox, que recentemente fizeram a apologia do franquismo no plenário ao negar que tenha sido "uma etapa obscura".
Dias mais tarde, e já depois de ter ouvido críticas por causa desta iniciativa, Sánchez acrescentou que as atividades para celebrar a "Espanha em liberdade" foram desenhadas por "uma comissão de peritos" e são de caráter "informativo, objetivo e científico", com o objetivo de "explicar estes anos em liberdade e o que significou a ditadura" num momento em que se voltam a ouvir "discursos fascistas".
O presidente do Partido Popular (PP, direita), Alberto Núñez Feijóo, acusou Sánchez de "desenterrar Franco" num momento de "desespero e decadência" da governação e de "agir como nostálgico do confronto entre espanhóis".
"Eles com a sua amargura de voltar aos anos 40, 50, 60 e 70. Que preguiça! E nós com os espanhóis de hoje, a trabalhar também para os espanhóis de amanhã", afirmou.
Uma das críticas mais comentadas e violenta a Sánchez veio de outra dirigente do PP, a presidente do governo regional de Madrid, Isabel Díaz Ayuso, que na rede social X acusou o primeiro-ministro de ter enlouquecido e ter decidido "queimar as ruas e provocar violência" com as celebrações dos 50 anos da morte de Franco.
Outras vozes do PP, mais moderadas, questionaram que o pretexto para celebrar a democracia seja a morte do ditador, dando-lhe protagonismo, e não as primeiras eleições ou a aprovação da Constituição de 1978, que instituiu o regime atual e é já assinalada em Espanha com um feriado nacional.
Para o presidente da Associação para a Recuperação da Memória Histórica (ARMH) de Espanha, Emilio Silva, o que o PP fez não foi atacar Sánchez, mas adotar uma atitude defensiva, atendendo ao papel dos seus dirigentes na ditadura e depois na transição, e o próximo ano, sobretudo, o 50.º aniversário da morte de Franco será "um momento interessante na disputa cultural" que permanece e se vive no país.
Espanha tem "uma direita que ainda não quer aceitar realmente toda a cultura que implica uma democracia e rejeitar a ditadura", afirmou, em declarações a jornalistas.
Emilio Silva lembrou que o PP tem entre os seus fundadores antigos ministros de Franco e defendeu que o partido tem ainda "de ajustar contas com a sua própria história".
O presidente da associação realçou que "neste choque" está, porém, otimista e considerou que o PP, apesar de tudo, tem dado pequenos passos no sentido certo nos últimos meses, livrando-se, por exemplo, de alguma influência do Vox em governo regionais.
Emilio Silva considerou positiva a iniciativa do Governo espanhol, defendendo que celebrar desaparecimento de um ditador "deveria ser algo natural para quem acredita na democracia".
"E neste país, infelizmente, não se pôde celebrar", acrescentou, numa referência ao processo da "transição espanhola".
A transição espanhola resultou de um entendimento entre os diversos protagonistas políticos da época, incluindo os dirigentes do regime franquista.
Essencial para essa transição foi uma lei de amnistia de 1977 que abrangeu os delitos políticos cometidos durante a ditadura pelos opositores ao regime de Franco e pelos "funcionários e agentes da ordem pública".
Organizações não-governamentais (ONG) como a Amnistia Internacional têm denunciado que esta amnistia criou um "muro da impunidade" que impede a investigação e julgamento até hoje dos "crimes contra a humanidade cometidos durante o franquismo".
Em outubro de 2022, o parlamento espanhol aprovou uma Lei de Memória Histórica que, apesar de não revogar a lei de Amnistia de 1977, estabeleceu que todas as leis espanholas se interpretarão e ampliarão em conformidade com o direito internacional, "segundo o qual os crimes de guerra, de lesa Humanidade, genocídio e tortura são considerados imprescindíveis e não amnistiáveis".
Em paralelo, a nova lei prevê a criação de um inventário estatal de lugares de memória democrática, como o Vale do Caídos, perto de Madrid, onde esteve enterrado Francisco Franco até 2019 e um dos maiores símbolos da ditadura espanhola.
Ao abrigo da lei de 2022 foi também criada uma Procuradoria da Memória Histórica, havendo a expectativa de que as queixas apresentadas na justiça relativas a crimes na ditadura, como torturas, deixem de ter como único destino o arquivamento, ao abriga da amnistia de 1977 e com o argumento de que os possíveis delitos prescreveram.
A Lei da Memória Histórica tem como objetivo, entre outras coisas, alargar a reparação das vítimas do franquismo e da guerra civil.
Mais de 500.000 pessoas morreram na guerra civil e há mais de 110.000 vítimas mortais da guerra e da ditadura por identificar, com os corpos ainda enterrados em valas comuns nunca abertas ou depositados em locais como o Vale dos Caídos.
O PP - o maior partido no parlamento espanhol - opôs-se também a esta lei de 2022, com Feijóo a considerar que "reabre o rancor" e "não semeia a concórdia", além de que "não respeita a Constituição e a transição".
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