Érica Sayado, de 20 anos, e Alfredo Almaraz, de 25 anos, são um dos exemplos da discrepância entre os indicadores do mercado e a realidade sentida no quotidiano na Argentina.
O casal, ela cozinheira e ele ajudante de cozinha, vivia na rua, situação que mudou há quatro meses. Sem casa nem emprego, começaram a juntar e a vender material para reciclar. Foi o suficiente apenas para alugar um quarto.
Ainda fazem fila para receber doações de comida e de roupa, das que dependem para viver, mas, nos últimos meses, passaram a ser mais otimistas quanto à possibilidade de conseguir trabalho na área da restauração.
"O problema era conseguir roupa e coisas necessárias para começar a procurar trabalho, para progredir. Para mim, que acabo de sair das ruas, são coisas que eu precisava. Sinto que a minha perspetiva de sair desta situação é muito alta", conta Érica à agência Lusa, enquanto está na fila para receber uns ténis doados na histórica Praça de Maio, em frente à Casa Rosada, sede do Governo.
Ao seu lado, Alfredo concorda. "As perspetivas são muito boas para conseguir trabalho porque, graças a Deus, com um lugar para vivermos, para fazer a nossa higiene e para deixarmos as nossas coisas, fica mais fácil conseguir trabalho", diz à Lusa.
Apesar da sua situação ainda muito precária, o casal assume o seu otimismo, um sentimento que vai ao encontro da narrativa de uma estabilidade generalizada promovida pelo Governo de Milei e cuja "peça mais valiosa" é o controlo da inflação, a principal bandeira da gestão do Presidente.
O aumento de preços em outubro foi de 2,7%. Pela primeira vez, nos últimos três anos, um índice de inflação ficou abaixo dos 3%. Para um mês de outubro, foi mesmo o índice mais baixo desde outubro de 2017.
O número assustaria qualquer país estável, mas é uma vitória na Argentina que, com 211,4% em 2023, foi o país com a taxa de inflação mais alta do mundo. Em dezembro passado, quando o Presidente Javier Milei assumiu a liderança do país, a inflação era dez vezes maior: 25,5%.
Para evitar que a desvalorização do peso argentino saísse de controlo e alimentasse a inflação, o Governo de Milei ancorou a desvalorização mensal da moeda em 2%. Sem essa base, o aumento de preços teria sido inferior a 1%.
Animado com os números da economia, Milei anunciou que a recessão económica acabou.
"Hoje já podemos dizer que a recessão acabou e, daqui em diante, tudo o que vier será crescimento. Daqui em diante, serão todas boas notícias. O país está a entrar no seu melhor momento dos últimos 100 anos", garantiu o governante.
A Bolsa de Valores de Buenos Aires está no ponto máximo desde de maio de 2018. Só este ano, cresceu 137,9%.
A taxa de risco-país baixou ao nível de março de 2019. Quando Milei assumiu era de 1.923 pontos-base; agora está em 745 pontos, com constantes quedas diárias.
Nos últimos quatro meses, o dólar tem perdido valor diante do peso argentino, a moeda que mais se valorizou no mundo. Em termos reais, o preço do dólar reduziu-se 50%.
Desde setembro, o Governo tem promovido uma regularização de ativos não-declarados. Em outras palavras, convidou os argentinos a colocarem no sistema bancário os dólares que estavam guardados em casa, ou na gíria popular que estavam escondidos debaixo do colchão.
O mercado previa que seria um êxito se o montante chegasse aos 4.000 milhões de dólares. Mas o resultado foi quase seis vezes maior: 23.321 milhões de dólares, um sinal de confiança por parte dos argentinos com poupanças.
Porém, enquanto o mercado financeiro festeja, a carteira do argentino comum desespera. Os números da macroeconomia ainda não se refletem no dia-a-dia. Os argentinos diminuíram o consumo e estão a gastar as poupanças. O anúncio do fim da recessão soa, por enquanto, como uma promessa.
Para sobreviver à crise, a comerciante Daniela Crucet baixou todos os custos e mudou o perfil da mercadoria. Conseguiu angariar consumidores que antes compravam roupas de marca nos centros comerciais, mas que agora recorrem a marcas desconhecidas, de qualidade, mas bem mais baratas.
"As pessoas mudaram de hábitos. Quem vestia roupa de marca, agora economiza. Muitas vezes deixa a mercadoria por não poder pagar. O que tem acontecido é que eu passo os cartões de crédito e muitos dizem que não há fundos suficientes. É alta a percentagem de compras rejeitadas por falta de fundos. É nessa hora que se percebe que as pessoas não compram porque não têm dinheiro", descreve a comerciante à Lusa.
Um desses casos é a reformada Mirta Balonga, que era cliente assídua da loja no bairro de classe média de Villa Urquiza. Agora, só ficou a amizade com a dona da loja. Vilma vem à loja só para conversar.
"Até deixei de comer certos alimentos. O meu marido e eu compramos nos supermercados 50% a menos do que comprávamos há um ano. Deixamos de consumir mercadorias de primeiras marcas por alimentos de segunda marca e cortamos todos os gastos que não são essenciais", relata Vilma à Lusa.
Em setembro, os salários registados subiram 3,8%. Os informais, 4,7%. Os dois índices superaram a inflação de setembro de 3,5%.
No entanto, entre setembro de 2023 e setembro de 2024, a inflação foi de 209%, enquanto os salários aumentaram 181,9%. Portanto, a perda de poder aquisitivo em média é de 27,1 pontos.
Os comerciantes ainda registam vendas inferiores em 30%, quando comparadas com o mesmo período do ano passado.
A atividade económica caiu 3,3% em setembro, comparada com o mesmo período do ano passado. O número está em sintonia com a queda do Produto Interno Bruto (PIB) no primeiro semestre (-3,4%) e com a expectativa do mercado para o ano em curso (-3,6%), segundo o Banco Central argentino.
Os setores que crescem no país são os vinculados com os preços internacionais das matérias primas ('commodities') como Agricultura (+3,1%) e Minérios (+7,6%) e aqueles vinculados com o setor financeiro como Bancos (+2,5%), mas ainda caem os que mais empregam e chegam ao bolso dos argentinos como Construção (-16,6%), Comércio (-8,3%) e Indústria Manufatureira (-6,2%).
Mas as projeções do mercado para 2025 confirmam o otimismo de Milei com o seu anúncio antecipado de fim da recessão. Segundo os principais agentes económicos do país, mensalmente sondados pelo Banco Central, o PIB crescerá, pelo menos, 3,6%, confirmando que o pior da crise já passou.
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